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'Perdi meu filho para a depressão e hoje acolho trans e suas famílias'

A manicure Ivoni Campos mostra foto do filho, Demétrio: ajuda à comunidade trans vai de cestas básicas a moradia Imagem: Zô Guimaraes/UOL

Pedro Ariel Salvador e Thiago Borges, da Periferia em Movimento

Colaboração para o UOL, de São Paulo

06/07/2022 04h00

No último dia dia 28 de junho, dia do Orgulho LGBTQIA+, a manicure Ivoni Campos, 44, passou por um dos momentos mais emocionantes da vida ao comparecer na Fundação Oswaldo Cruz, em Manguinhos, zona norte do Rio de Janeiro, para participar da cerimônia de requalificação civil de seu filho Demétrio Campos, homem trans, que teve o nome corrigido na certidão de nascimento. Com o documento em mãos, no entanto, faltou o mais importante na celebração: a presença física dele.

Demétrio se suicidou em 17 de maio de 2020. Para a comunidade trans, na verdade, ele "foi suicidado", termo utilizado para se referir a situações em que a discriminação social, a transfobia ou a homofobia se tornam fatores que estimulam o ato. Desde então, Ivoni transformou a dor da perda em força para ajudar outras pessoas como o filho. Em outras palavras, como costuma dizer a comunidade trans, se tornou uma "cis aliada" —pessoas cisgênero que se engajam na luta da população trans.

Depois que Demétrio faleceu, ela assumiu as redes sociais do filho com o intuito de manter sua memória viva. Aos poucos, suas publicações e lives chamaram a atenção de mais pessoas, que a procuravam para pedir conselhos e ajuda.

"As pessoas me procuram pelo WhatsApp e por mensagem no Instagram do Demétrio. São questões de moradia, cesta básica, depressão. Há uns três meses, encaminhei um menino para Casa Nem [centro de acolhida no Rio de Janeiro]. A família dele era religiosa e tinha botado ele para fora. Tinha um mês que esse menino estava na rua", conta.

Assim que soube da situação do garoto, Ivoni solicitou ajuda ao serviço de assistência social da prefeitura, que prevê atendimento em até 15 dias úteis. Mas diante da urgência, diz que precisou ameaçar um escândalo para conseguir um veículo que pudesse transportar o jovem do local onde ele estava em situação de rua até a casa da ONG, que iria acolhê-lo. E conseguiu.

"Tem situações em que sou obrigada a tomar esse tipo de atitude porque as pessoas cis não se movimentam. Se elas não se movimentam nem para ajudar outra pessoa cis, preta, pobre e periférica passando fome na cidade, você imagina com um homem trans, uma travesti preta, que não consideram nem como pessoas", diz. Ivoni Campos, ativista

Os pedidos de ajuda chegam de todos os lugares do país. Ivoni recorda uma ligação que recebeu certa vez de "um menino do Nordeste" que já havia retificado seu nome e retirado as mamas, mas que a mãe ainda não o chamava pelo nome retificado, apenas pelo "nome morto", como a comunidade considera o nome registrado no nascimento.

Ivoni ligou para a mãe do rapaz e teve uma longa conversa com ela. "A mulher chorou, chorou, chorou e eu falei: 'Olha só, se você não amar o seu filho, se você não cuidar dele, se você não respeitar, o mundo lá fora vai matá-lo'", lembra.

"Fui até um pouco drástica com ela, mas tive que falar. Disse: 'O meu filho se matou e não foi por causa da família dele. Foi por causa da sociedade. Quando você deixa de acolher dentro do seu lar, você está jogando-o à própria sorte'. Até hoje, ela é minha amiga. E o rapaz me liga, pergunto da mãe, e ela, agora, o respeita".

'Quis ajudar meu filho quando o vi sofrendo'

Nascida e criada no quilombo Maria Romana, em Cabo Frio (RJ), Ivoni sempre buscou transmitir a Demétrio e aos outros dois filhos —Letícia, 22, e Lukas, 13— a importância da empatia. "Não consigo ver uma situação e não fazer nada", conta.

"Desde que Demétrio nasceu, era diferente. É muito difícil para uma mãe lidar com a realidade dentro do processo de transição. Para todas as mães é difícil. Não vem falar que não é, porque é. Mas quando vi Demétrio com seus 15 ou 16 anos de idade, sofrendo, tomei a atitude de ajudá-lo", conta.

Em 2019, Demétrio gravou um vídeo em que contava alguns dos problemas que tinha que enfrentar na juventude. "Passei de uma mina assediada para um cara oprimido. Hoje, sou olhado como alguém que vai assaltar, agredir".

Preto retinto, então com 22 anos, Demétrio vivia entre as periferias de São Paulo e Cabo Frio, onde a família mora até hoje. A mãe também enfatiza que ele precisou lidar com diferentes opressões, o que piorava sua depressão.

"Os homens trans pretos retintos são os que mais sofrem. Eles sofrem antes da transição, sendo sapatão. Depois da transição, eles apanham da polícia, são desrespeitados dentro de locais públicos, de locais privados, no ambiente de trabalho. É como se alguém te esfaqueasse várias vezes, todo dia um cortezinho. Foi exatamente o que aconteceu com o meu filho"

No ano em que Demétrio morreu, a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) registrou 23 casos de suicídio, sendo sete de homens trans e transmasculinos. Uma pesquisa mais antiga, feita em 2015 pelo projeto Transexualidades e Saúde Pública no Brasil, do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT e o Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), revelou que 85,7% dos homens trans já pensaram em cometer suicídio.

Mãe de menino

Ivoni diz que demorou para entender o que o filho passava mas, quando isso aconteceu, era a primeira a defendê-lo. "Uma vez, levei Demétrio a consulta em Macaé (RJ), e ele tinha que botar o rosto na câmera para tirar uma foto para o cadastro. A foto da identidade estava diferente porque a aparência vai mudando depois que começa a tomar hormônio. A mulher [atendente] começou a chamar o Demétrio de 'ela'. Olha, deu uma briga".

Para Ivoni, todo profissional da saúde deveria, uma vez por ano, passar por um curso de reciclagem, aprender como tratar as pessoas e a ter empatia. "Já cheguei pedindo atendimento para o Demétrio por tentativa de suicídio no pronto-socorro, e o médico falou 'é frescura, é fogo no rabo'. Isso não é uma maneira humanizada de tratar uma pessoa", conta.

Desde 31 de março deste ano, uma nota técnica da Secretaria de Estado da Saúde do Rio de Janeiro instituiu o direito ao uso e tratamento pelo nome social de pessoas trans em todas as unidades estaduais, além de prever capacitação de gestores e equipes de saúde do estado e dos municípios.

A solidão e a alegria da militância

Hoje, Ivoni é articulada com diversas entidades LGBTQIA+, como a Antra, os centros de acolhimento Casa João Nery, Casa CHAMA e Casa 1, todas em São Paulo; Casa Nem e Frente LGBT do Rio de Janeiro . Ela também é a única mulher cis associada ao IBRAT (Instituto Brasileiro de Transmasculinidades), que atua em todos os estados do país e é formado por homens trans e pessoas não binárias.

Em Cabo Frio, o Ambulatório Municipal de Atenção à Saúde de Travestis e Transexuais recebeu o nome de seu filho graças à luta que ela empenhou. Futuramente, Ivoni pretende cursar uma faculdade de psicopedagogia e abrir um espaço de acolhimento e atendimento psicológico e psiquiátrico para pessoas LGBTQIA+.

Porém, ela enfatiza que a militância também pesa. "Antes, quando eu não era aliada declarada nas redes sociais, as pessoas falavam comigo, conversavam comigo, me chamavam para festinha, para rolê. Hoje, vivo totalmente isolada. Tem gente até que foge de mim", diz.

Ao mesmo tempo, diz que tem procurado espaços para se fortalecer. Recentemente, ela participou de um processo chamado Roda Terapêutica das Pretas, em que aprendeu a se valorizar como mulher negra e quilombola e a controlar a ansiedade.

"Quando vejo um rosto preto com um sorriso, uma gengiva preta, é ali que vejo meu filho. Quando eu vejo um homem preto, trans, periférico, rindo e sorrindo, é ali que eu vejo o rosto do meu filho"

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