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Ela virou perita criminal para bancar sua arte: 'Cena de crime me fascina'

A artista e perita criminal paraense Berna Reale Imagem: Flavio Freire

Denise Meira do Amaral

Colaboração para Universa, de São Paulo

29/06/2022 04h00


"Sou nascida no Pará, artista, e minha conexão com a perícia criminal começou em 2006, quando fui convidada para fazer uma instalação no mercado de carnes de Belém, onde nasci. A ideia era brincar com "quem come quem?" e abordar a dualidade entre a fartura e a miséria, o animal e o humano, através de fotografias de vísceras humanas dispostas em caixinhas acrílicas iluminadas nos boxes de carne.

As pessoas não perceberam a diferença entre a carne humana e a animal —as tripas são muito parecidas. Para este trabalho, passei oito meses frequentando o IML e fui conhecendo melhor o trabalho da perícia. Até que escutei os colegas falando que teria um concurso e me incentivaram a prestar.

Eu me interessava muito pelas histórias dos cadáveres: onde a pessoa morreu, em qual a situação ela estava, se foi suicídio, feminicídio, homicídio, briga de bar... Os rapazes da remoção vinham contando toda a fabulação. Esse cenário me fascinava. Depois de dois anos e meio, acabei me tornando perita criminal, em 2010.

Além de ser apaixonada, foi uma forma de poder bancar a minha arte. Tinha duas filhas pequenas para sustentar e muitas contas a pagar. Só consegui fazer um trabalho mais contínuo como artista após me tornar perita.

Trabalhar com arte requer investimento. Sou perita até hoje. Se formos fazer arte pelo mercado não damos sequer um passo.

"tenho dificuldade em conseguir isolar uma cena de crime. Quem passa fotografa com o celular", diz Berna Reale Imagem: Arquivo Pessoal

O perito é a pessoa acionada pela polícia após um crime. Fazemos análises para encontrar vestígios que possam elucidar o crime, como sangue, esperma, impressão digital, pólvora, arma branca e arma de fogo. O perito criminal é a fonte primária, você vê a realidade como foi exatamente. Trabalhar com essa realidade, sem filtros, me instigou a criar performances.

Para mim, a performance é colocar o próprio corpo como objeto de arte, como instrumento de reflexão. Minha performance preferida é "Cantando na Chuva", que apresentei em 2013, num lixão na Grande Belém. Danço naquele lixão, em cima de um tapete vermelho, enquanto as pessoas estão catando lixo. É a síntese da nossa sociedade: uma minoria com poder e uma maioria no submundo.

Cantando num lixão, com chuva e sol, um total absurdo, surreal e irônico ao mesmo tempo. Havia explicado a performance para os catadores do turno anterior, mas como a gravação atrasou, não tive tempo de falar com os novos. Apenas pedi para continuarem fazendo o trabalho como se a câmera não estivesse ali. Mesmo sem ter explicado, quando terminei a performance, aplaudiram muito. Eles entenderam tudo. Foi incrível.

Berna Reale em performance de "Cantando na Chuva", de 2014 Imagem: Divulgação

Atualmente estou em cartaz com uma exposição chamada "Agora: Right Now", na Galeria Nara Roesler de São Paulo, com fotografias e pinturas que procuram refletir a forma como a mídia lida com a violência, utilizando a moda como construção dessa linguagem estética. Nesse exato momento que falo com você, uma pessoa está cometendo suicídio, uma mulher está sendo morta, uma criança está sendo violentada.

"Cabeça Raspada" (2022), fotografia de Berna Reale Imagem: Cortesia Berna Reale e Galeria Nara Roesler

A exposição é também uma forma de denunciar a precariedade da prisão, onde as mulheres são desprovidas de uma série de direitos. Elas não podem sequer exercer sua vaidade e são tratadas como se fossem homens, sem se atentar para as particularidades de ser mulher, como a questão da menstruação.

Como as fotos foram feitas durante a pandemia, produzi tudo no meu próprio quarto. Tirei a cama, deixei só o colchão e coloquei um tecido de cada cor nas paredes. Muitas das modelos fotografadas são ex-presidiárias que conheci trabalhando. A mulher da foto com tornozeleira é de uma delas e cumpre o resto da pena em regime aberto.

Trabalhei em um presídio feminino por dois anos em um projeto de reinserção social. Essa experiência me tocou muito mais do que todos os anos que trabalhei na cena do crime. No presídio as pessoas estão vivas, tem um sofrimento latente.

Até hoje não consegui sair do presídio. Nas minhas folgas vou lá e faço o que posso para ajudar as mulheres. Criei um projeto chamado Chance, com o intuito de ajudar as egressas divulgando seus trabalhos, pedindo doações, etc.

"Acorda Alice" (2022), fotografia de Berna Reale Imagem: Cortesia Berna Reale e Nara Roesler

O suicídio, que aumentou na pandemia, também está presente na exposição. Por meio da pintura, encontrei uma forma de falar mais diretamente da cena do crime e criar uma reflexão sem que as pessoas tenham aversão. O suicídio me faz pensar como a vida é efêmera e como o ser humano não tem apreço pelo outro. Estamos vulneráveis o tempo inteiro.

Acredito que a humanidade possui um fetiche pela violência. Quando os meios de comunicação avisam: "Cuidado, cenas violentas", todo mundo clica.

Trabalhando como perita, tenho muita dificuldade em conseguir isolar uma cena de crime. Quem passa fotografa com o celular. É uma luta. Tem uma banalização dessas imagens.

E é complicado estimular a violência. Houve um caso na perícia de uma criança de 9 anos que pegou a arma do pai e acabou morrendo com um tiro na cabeça.

"Blitz" (2022). "Essa foto fala sobre o fascínio do armamento. É um homem chupando uma arma, meio fálica" Imagem: Cortesia Berna Reale e Galeria Nara Roesler

O que me incomoda muito no debate sobre porte de armas é tratá-la como se fosse um meio de defesa, quando na verdade é um instrumento de violência. Aquela foto do presidente com um garotinho com uma arma é de uma violência inaceitável para um governante. Inclusive tenho uma foto na exposição que fala sobre esse fascínio do armamento. É uma foto de um homem chupando uma arma, meio fálica.

Com o meu trabalho, através da semiótica, tento extrair símbolos dessa violência, de maneira muito específica, às vezes dúbia, para questioná-la. A ironia é um subterfugio muito interessante.

Berna Reale, 56 anos, é perita criminal e artista formada pela Universidade Federal do Pará e mora em Belém.

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