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Criolo: 'Quando se fala de periferia, a gente está falando do Brasil todo'

Músico Criolo lançou recentemente o álbum "Sobre Viver" Imagem: Luiz Maximiano

Manuela Aquino

Colaboração para Universa, de São Paulo

26/06/2022 04h00

"Permaneço vivo, prossigo a mística. Vinte e sete anos contrariando a estatística" diz um trecho da música "Capítulo 4, versículo 3" dos Racionais MC's e fala da realidade do jovem negro que mora na periferia de São Paulo, assim como o rapper Criolo. Aos 46 anos, ele fala que se não fosse o rap, se a arte não o tivesse salvado, poderia fazer agora parte da triste estatística que mostra que negros são vítimas de 80% das mortes violentas de jovens no Brasil. "Está escancarado como nossa sobrevivência é difícil", disse em entrevista ao Universa.

Depois de fazer trabalhos com outros ritmos musicais, lançou recentemente o álbum "Sobre Viver", desta vez de rap. Antes dele, Criolo lançou a faixa "Cleane", em parceria com o Tropkillaz e um vídeo-manifesto chamado em que fala em forma de música sobre a morte de sua irmã, Cleane Gomes, que faleceu de covid aos 39 anos. No fim do vídeo, ele aparece de mãos dadas com seus pais, Maria Vilani e Cleon Gomes. Os dois apoiaram o filho desde que começou a escrever em um caderno, entre uma jornada e outra de trabalho e estudos, no bairro do Grajaú, periferia de São Paulo. "Minha mãe sempre foi apaixonada por palavra", conta. Hoje autora, aos 76 anos, ela lançou seu livro "Memórias de Maria e um pouquinho de mim", juntamente com o álbum do filho.

A vida da família mudou mais de vinte anos depois das primeiras músicas escritas, quando conseguiu gravar um álbum, e passar das festas do bairro para os palcos de casas de shows menores, depois maiores e enormes festivais. Enormes também são as pessoas que acabaram fazendo parceria com ele, seus ídolos, que ouvia com os pais, como Milton Nascimento e Alcione.

Mas, para o artista e sua família, tudo isso é lindo mas não sobe à cabeça —depois de muito sofrimento é como se estivessem anestesiados, disse sua mãe. "Pra mim ainda é surreal, mas a gente tem o direito de querer coisas boas. A gente quer comida no prato, casa, plano de saúde", fala. No fim, mesmo com todo reconhecimento, o Criolo ainda segue sendo muito daquele retratado nas músicas dos Racionais - apenas um rapaz latino-americano, apoiado por mais de cinquenta mil manos.

Na faixa "Cleane", em parceria com o Tropkillaz, cantor sobre a morte de sua irmã, Cleane Gomes, que faleceu de covid aos 39 anos Imagem: Luiz Maximiano

UNIVERSA "Sobre Viver" é o título do seu álbum. Por que a escolha deste nome e o motivo de sobreviver estar separado, já que este é um tema recorrente seu?
CRIOLO O "Sobre Viver" é enxergar isso que muita gente não enxerga. A gente tem uma rotina, um dia a dia que a gente acorda até a hora que a gente vai dormir e vai construindo este presente, este futuro mais próximo. E vamos descrevendo o que é essa luta diária, desse respirar.

Nosso território é um tanto disso que a gente vive por aqui. A palavra separa não é pelo impacto, são coisas muito próximas mas são diferentes. A nossa sobrevivência está escancarada o quanto é difícil. Mas como é descrever isso? Viver nisso e tentar sair disso? São coisas próximas mas colocando uma lente de aumento vemos umas diferenças. Tentei escrever este cotidiano de luta do nosso povo.

Queria falar sobre sua irmã Cleane , que morreu de covid, no auge da pandemia. Você escreveu uma música, fez um clipe com participação de seus pais. Você conseguiu com sua arte exorcizar seus sentimentos?
Faz um ano do falecimento da minha irmã. Como a gente se abraça? Como eu abraço minha mãe? Então, a arte vai além de muita coisa.

Não dá para exorcizar nada não, a gente só tenta outras formas de se comunicar. Foi muito difícil pra mim. Se não fosse minha mãe participando desta faixa talvez ela não existisse.

Ela consegue de um jeito inexplicável nos acolher. Não é que resolveu. Mas de algum jeito foi a gente entender que tem que seguir, até por memória, por carinho, pela potência de amor de quem se foi. Continuar a contar a história dessas pessoas lindas que têm memória, endereço, família e trajetória. Diante disso e de toda sua história, o que é música, então para você?

A arte, a música é muito especial nisso. Não existe uma resposta para sua pergunta e eu te peço perdão. E aí volta na questão. O que é cantar? O que é teu coração? E isso se esparramar em poesia? Você dedica toda sua vida a cantar e quando vê é peça fundamental de fortalecimento de sua família.

Acaba sendo responsável pela economia da sua família e de muitas pessoas que acabam contando com isso. A gente que vem de favela, de quebrada, a música para a gente não é um jogo. Vai para além de se expressar. É o sonho de trazer algo de bom para a família. Como a gente equaciona isso num mundo tão desigual? Não tem essa resposta, mas a arte sempre proporciona caminhos para esses diálogos.

Os últimos anos no Brasil tem sido repleto de notícias trágicas: pandemia, aumento da desigualdade... Você acha que tem alguma possibilidade de melhorar? Você fala de um jeito tão doce sobre as desigualdades, como faz para manter a calma?

Criolo nasceu e foi criado no bairro do Grajaú, periferia de São Paulo Imagem: Luiz Maximiano


Eu te atacar não vai resolver, a gente mora no mesmo país. E cada um a seu jeito quer uma melhoria para isso tudo. Aqui, a gente já passou fome. Estamos no mapa há muito tempo, mas foi escancarado em um nível muito brutal. Quando o planeta foi atingido por essa pandemia, ficou mais evidente a falta de estrutura real. Não tem como tapar o sol com a peneira e nós temos total condição de sair desse lugar. A indústria da fome enriquece alguém e isso faz mal pra todo mundo até para quem se enriquece.

A educação para você é o caminho?
A magistratura é incrível. Todas as profissões. Faltou uma profissão, faltou para a sociedade. A educação é o caminho principal. O investimento real na educação e em nossos professores e a todos os personagens ligados é o primeiro grande passo.

Você estudou com sua mãe, como foi essa fase?
Eu fiz o primeiro, segundo e terceiro colegial com ela. Aos 14, 15 e 16. Ficamos três anos juntos na mesma sala. Foi muito bom. A gente não ficava trocando muita ideia, não, às vezes estava de mãe e filho, às vezes de colega, ali no ambiente cada um tinha seu rolê. A coisa mais valiosa para mim foi enxergar a minha mãe sem a personagem mãe.

Como você passou a enxergar sua mãe?
Ela não é só mãe. Ver um ser, a Maria Vilani. Uma pessoa legal, que faz amizade com todo mundo, que troca ideia, que conta piada. Um monte de gente se apaixonou por ela, não porque era a mais velha da sala, mas porque era legal, pra cima. Foi muito importante. Eu não tinha como racionalizar na época, mas estou te falando, aos 46, que foi incrível. Mudou tudo para mim.

O que você aprendeu com sua mãe fora da sala de aula? Quais ensinamentos que carrega?
Minha mãe, aí, não sei te descrever. Me faltam palavras. É uma pessoa que desde muito cedo sofreu, passou fome, perdeu o pai, mas nunca deixou de gostar da palavra, dos livros, dos estudos. apaixonada por descobrir novas coisas e transformou a vida dela num instrumento de propagação das artes.

E minha irmã, ai meu, como vou te falar? Tenho que puxar um ar aqui. Uma doçura de pessoa. Professora de português e literatura na rede pública aqui de só, quem é professor sabe da dificuldade e dedicação necessária. Afeto dedicação e carinho e sempre vejo ela nos olhos do meu sobrinho. Estou aqui para aprender todos os dias com elas.

Criolo dividiu a sala de aula com a mãe durante o ensino médio: 'O investimento real na educação é o primeiro grande passo' Imagem: Luiz Maximiano

Por que você escolheu o rap novamente, sendo que seu último álbum neste estilo foi em 2014?
Olha, veio de modo natural. Eu fiquei muito tempo sem escrever e não ficava forçando situações. Foi como no "Espiral de Ilusões", em que todas as emoções desaguavam no samba. Eu não fui dono desse processo, não foi uma escolha.

E aconteceu agora na construção desse álbum maravilhoso. O rap é algo extremamente importante na minha vida. Tem uma energia única e é uma expressão de arte que me salvou, que me deu oportunidade de me expressar. Também de fazer novos amigos e de me levar para os quatro cantos do Brasil. Não consigo imaginar minha vida sem o rap.

O rap tem essa importância mas ao mesmo tempo você não gosta de falar que você é uma voz da periferia. Por quê?
Por que todo mundo é. E existem muitos territórios que eu ainda não visitei. Tem um outro balaio cultural a ser apresentado. Quando se fala de periferia, a gente tá falando do Brasil todo, deste país continente gigante.

A música é uma ferramenta de expansão, de diálogo. Eu faço parte de uma geração, mas teve outras antes de mim que me influenciaram e que de algum jeito criaram a situação para eu poder participar disso. E todos juntos criamos muitas vozes, cada uma com seu timbre, com seu sotaque, o que expressa sua localidade. Pensando em expressão artística, o rap é um campo gigantesco.

Quais são suas influências dos anos 90, quando você ouvia rap?
Racionais, RZO, Sabotage, todos eles. Eram nossos ídolos, né, mas tudo era muito distante. Criaram um ambiente de que ser feliz não era para a gente. Conquistar coisas? O Sabotage transformou tudo, mostrou que a gente podia sorrir, se abraçar, se unir a outras artes. E você ver um grupo de rap da zona oeste de São Paulo, como o RZO, que você se identificava fazendo um vídeo clipe, aquilo era uma coisa surreal.

A sua música tocar no intervalo da escola ou alguém te chamar para cantar em uma festa de rua, já era tudo, era o que tinha. O rap era gigante na força de transformação social. Dentro da sociedade, da indústria ainda era feito de tudo para abafar essa energia. Muito diferente de hoje. Os nossos horizontes eram estreitos. Se você tocasse em uma rádio, o sonho já tinha sido alcançado.

Você falou de tocar em rádio, na escola e hoje os rappers são chamados para grandes festivais, como Lollapalooza e Rock in rio, como você analisa isso?
Acho igualmente surreal, nunca imaginei. Agora, os grandes festivais convidarem é uma consequência da caminhada de cada um que deu o sangue e fez acontecer. Por que se não chama a gente, chama outro. Ninguém vê quando o cara vai cantar na festa da família, da igreja quando precisa trocar o piso, ou ajudar o orfanato do bairro. Ninguém foi lá ver, só as pessoas que sabem que a gente se ajuda.

Eu acredito que os artistas do rap nacional fazem um trabalho tão lindo quanto qualquer outro artista. Temos que estar em todos os lugares, às vezes um artista desponta em um, dois anos, mas tem uma caminhada de muitos mais e também sonha em estar em outras estruturas.

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