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A marca Daslu vai a leilão: o fim de uma história de luxo, crime e falência

A empresária Eliana Tranchesi, dona da Daslu Imagem: Valéria Gonçalvez/AE
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Angélica Santa Cruz

Colaboração para Universa, de São Paulo

07/06/2022 04h00Atualizada em 22/06/2022 11h10

"O momento é grave!", disse o ex-presidente Fernando Collor de Mello logo no início do pronunciamento em que, no dia 16 de março de 1990, anunciou a abertura para comercialização de produtos importados no país. Com os olhos vidrados em uma televisão colocada sob um gazebo da Daslu, Eliana Tranchesi, então com 35 anos, acompanhou o discurso feito em cadeia nacional. E achou que, na verdade, o momento era ótimo.

"Vamos trazer a Chanel, a Gucci, a Prada para o Brasil!", anunciou, no que parecia um transe megalômano da filha da dona de uma butique de bairro.

Nove anos depois, ela fez o impossível: convenceu a Chanel a abrir a sua primeira loja do mundo dentro de uma outra loja, a Daslu —que acabou se transformando na empresa varejista que por anos foi símbolo do mais alto luxo da moda brasileira. A saga para trazer a maison francesa resume as particularidades da marca que, sob todos os critérios, foi um monumental case de empreendedorismo feminino —antes de cair em desgraça e ser associada a um mundo de ostentação agressiva.

Uma década após a morte de Eliana, que se envolveu em escândalos de sonegação fiscal e formação de quadrilha, aconteceu nesta terça-feira (7), às 13h, o leilão da marca Daslu. O lance mínimo para levar a marca era de R$ 1,4 milhão. A maior oferta foi de R$ 10 milhões, e o comprador ainda terá que desembolsar 5% de imposto para a leiloeira Sodré Santoro, responsável pelo certame. O UOL tenta contato com a Sodré Santoro para confirmar a venda. O valor arrecadado será usado para pagar os custos de seu processo de falência.

A Polícia Federal estima cerca de R$ 500 milhões apenas em dívidas tributárias. Os advogados da marca, no entanto, contestaram débitos. De toda forma, o leilão da marca é uma das ações judiciais para ir abatendo a dívida.

Universa ouviu quatro fontes para esta reportagem, com graus diferentes de proximidade com a empresária, que morreu de câncer no pulmão, em 2012. Todas pediram anonimato, para não serem associadas àquele mundo de opulência ou por temer falar algo que, mesmo tanto tempo depois de sua morte, possa prejudicar a imagem de Eliana.

Mas os bastidores da ascensão e queda da loja você lê a seguir:

O começo de tudo

Vista do Café Pati Piva dentro da antiga loja Daslu Imagem: Marcos Mendes

No embalo do Plano Collor, Eliana Tranchesi pegou dinheiro emprestado com a família e foi fazer compras em showrooms de grandes grifes na Europa.

Quando chegavam à Daslu —até então uma butique que se alastrou por um labirinto de casinhas no bairro da Vila Nova Conceição, em São Paulo— as roupas e os acessórios voavam. Uma a uma, as marcas perceberam a força de suas vendas e passaram a fazer acordos de exclusividade com a lojista.

Mas Eliana queria também uma loja de alto luxo dentro da Daslu —e mirou na Chanel.

Começou a encurralar a classuda grife francesa com argumentos sincerões e lábia de vendedora. Em uma apresentação para executivos da marca em Paris, por exemplo, levou um álbum de fotografias. Mostrou o festivo ecossistema da Daslu, composto por mulheres sorridentes e bem-nascidas que trocavam de roupa transitando pelos ambientes sem provadores.

Apontou fotografias das festas de casamento em São Paulo, de detalhes da decoração dos aniversários, dos pontos cheios de flores e gazebos de sua loja.

Enquanto folheava o álbum, explicava que aquele era um universo feito de brasileiras com muito dinheiro e loucas para comprar —desde que a venda fosse feita por alguém com experiência no varejo e que conhecesse seus gostos profundamente.

Acabou convencendo a grife a enviar alguém a São Paulo para ver esse planeta com os próprios olhos. Primeiro, chegou um diretor de vendas que esperava ser recebido em um escritório, mas foi hospedado em um hotel de luxo e, depois, homenageado com um jantar glamouroso na casa de Eliana —lotado de convidadas que usavam roupas caras, joias reluzentes e falavam de suas últimas viagens.

A dona da Daslu explicou para o visitante: "O único jeito de você acreditar no que estou te falando é vendo as minhas clientes na ativa. E a ativa delas é isso, elas são assim". Depois dele, vieram outros, cada vez mais importantes na hierarquia da marca —todos submetidos a estadias de sonhos. A Chanel, enfim, capitulou.

Interior de uma filial da loja da Daslu, no Shopping Cidade Jardim, no dia de sua inauguração, em 31/5/2008 Imagem: Evelson de Freitas

O dia da inauguração da loja da maison francesa na Daslu foi uma loucura. O lugar tinha 100 metros quadrados e ficava em uma espécie de sótão, onde se chegava subindo uma escadinha. No momento em que abriu, a maioria das peças já estavam vendidas.

No espaço, lotado, clientes tentavam comprar o que sobrara. Lá pelas tantas, uma diretora da grife enviada pelo escritório de Paris foi vista segurando um manequim no colo, para ajudar uma cliente a arrancar dele uma saia que ainda estava à venda. Foi para as cucuias uma das principais regras da grife: a de que seus compradores só podem tocar em produtos entregues por vendedores com solenidade, como se fossem obras de arte.

A loja virou uma das campeãs de vendas da grife no mundo. Chegava ao período de liquidações com mais de 90% do estoque vendido, quando as boas performances eram de 70%. Depois dela, a Daslu trouxe a Gucci, com o mesmo sucesso. Em seguida, a Prada. Cinco anos depois, com o modelo de revenda ou com lojas exclusivas, a Daslu tinha 150 grifes estrangeiras. Estavam na lista Dolce & Gabbana, Giorgio Armani, Louis Vuitton, Christian Dior, Burberry e Yves Saint Laurent, só para citar alguns.

Dasluzetes

Eliana Tranchesi era boa de contas. Fazia cálculos de cabeça que deixavam os interlocutores meio tontos. Era também workaholic —todos os dias, almoçava enquanto trabalhava, dentro da Daslu, e de preferência um prato leve como ravioli de mussarela de búfala com tomates frescos.

Era durona. Combinava com a equipe, majoritariamente feminina, de só começar a trabalhar a partir das 10h, para que todas pudessem levar os filhos na escola. "Mas, depois, vocês são minhas", avisava.

Foi trabalhar na Daslu quando tinha 25 anos. Formada em artes plásticas, queria um jeito rápido de ganhar dinheiro enquanto o ex-marido, o cardiologista Bernardino Tranchesi, fazia residência no curso de medicina.

Em um período pré-internet, inventou o que hoje é conhecido como "experiência". Quando entravam na loja sem vitrines, as clientes mergulhavam em um clube privado, com atendimento exclusivo, decoração que emulava conforto e riqueza, champanhe, fofocas.

'Dasluzetes": as vendedoras da Daslu eram jovens com sobrenomes tradicionais, filhas das frequentadoras da loja Imagem: Valéria Gongalvez

Também inaugurou no Brasil a era das influencers. Contratou jovens com sobrenomes tradicionais, filhas das frequentadoras da loja, para vender as roupas e ajudar a moldar o gosto da clientela. Eram as "dasluzetes". Sophia Alckmin, filha do governador Geraldo Alckmin, e Carolina Magalhães, neta de Antônio Carlos Magalhães, por exemplo, trabalharam na Daslu.

Duas vezes por ano, Eliana Tranchesi viajava com um punhado de "dasluzetes" para a Europa. A ideia era fazer com que elas entendessem o funcionamento de um showroom e fotografassem os desfiles, em filmes analógicos guardados em sacos e trazidos para o Brasil em grandes malas.

Sorridentes, escovadas e vestidas de um jeito idêntico —casaquinho Chanel, calça jeans Daslu, camiseta básica de elastano e sapatos Manolo Blahnik— viravam sensação por onde passavam.

Fotografadas nos showroons e nas portas dos desfiles, começaram a apontar tendências. Com o tempo, foram virando blogueiras. A certa altura, a Daslu passou a fazer desfiles de lançamento de suas coleções, dentro da loja. Eram três por dia: um às 11h, outro às 15h e o último às 17h.

As "dasluzetes" eram as modelos —e o que entrava na passarela era vendido na hora. Era uma máquina de desejos de consumo que, turbinada com facilidades como pagamentos divididos em prestações e preços apenas 30% acima dos praticados fora do país, girava um faturamento de R$ 400 milhões anuais para a Daslu.

Nova sede

Fachada da loja da Daslu construída na avenida das Nações Unidas Imagem: Sérgio Castro/AE

Em 2003, a Daslu foi obrigada a deixar as casinhas na Vila Nova Conceição, por causa da lei do zoneamento urbano e por exigência da prefeitura de São Paulo. Na paralela, Eliana Tranchesi quis encontrar um novo espaço onde pudesse construir lojas maiores para seus parceiros internacionais que, de olho nas vendas que só cresciam, a pressionavam para abrir outras lojas no Brasil.

Tentou achar um terreno para construir uma cópia do labirinto de casinhas da Vila Nona Conceição. Não encontrou. E acabou escolhendo a obra abandonada de um prédio da Eletropaulo, na Vila Olímpia, às margens da Marginal Pinheiros.

Durante nove meses, sentou-se na mesa da cozinha de sua casa, depois do expediente, com uma equipe do arquiteto Julio Neves, famoso por seus projetos neoclássicos, para encontrar jeitos de erguer uma megaloja, mas com um interior cheio dos pequenos ambientes privados próprios da Daslu.

Em junho de 2005, o prédio de 17.500 metros quadrados batizado de Villa Daslu abriu as portas. A megaloja conseguiu alguns feitos. Tinha 70 mil cadastrados, 1.500 potenciais compradores por dia. Um dos primeiros desfiles de lançamento de coleção feitos ali, em uma tarde de tempestade, vendeu R$ 1 milhão, marca considerada fenomenal em qualquer lugar do mundo.

Mas, no novo lugar, imenso, com acesso exclusivo para carros, cheio de estátuas de leões e com um helicóptero pendurado no teto, a Daslu deixou de alimentar a mitologia folclórica de um clubinho de mulheres ricas. Passou a ser associada ao símbolo de uma elite ensimesmada e de mau gosto.

Queda e abandono

Eliana Tranchesi, dona da Daslu, posa para fotos com suas funcionárias; ela foi acusada pelo Ministério Público Federal de formação de quadrilha, importação de produtos feita de forma irregular e falsidade ideológica Imagem: Mônica Zarattini

Em 13 julho de 2005, menos de um mês depois da inauguração, a loja foi alvo de uma blitz. Realizada pelo Ministério Público, a Receita Federal e a Polícia Federal a Operação Narciso investigava a Daslu por operar um esquema monumental de subfaturamento de mercadorias importadas. Eliana e seu irmão, Antonio Carlos Piva de Albuquerque, além de vários dirigentes da empresa e de importadoras ligadas à Daslu foram detidos. Eliana, porém, foi liberada logo depois de prestar depoimento.

No dia seguinte, recebeu tantas flores que o gramado perto da piscina de sua casa, no bairro do Morumbi, ficou lotado de vasos. A loja, no entanto, mergulhou em dívidas e entrou num processo demorado de declínio.

Em 2009, a empresária foi condenada a 94 anos e seis meses de prisão por formação de quadrilha, fraude em importações e falsificação de documento. Ficou presa por 12 horas, mas conseguiu um habeas corpus, porque já havia sido diagnosticada com câncer no pulmão.

Grande parte da multidão de amigos das décadas em que a empresária deu as cartas no mundo do comércio de luxo foi progressivamente se afastando dela.

O surubão, apelido do imenso sofá da sala de sua casa, passou a ser ocupado só pela família e por um pequeno grupo de amigos fiéis. Muito católica, Eliana dizia não se abalar —afirmava que estava cercada de quem realmente importava.

Em seu último ano de vida, ficou afastada do que restou da Daslu, porque, em tratamento contra o câncer, não tinha condições físicas de trabalhar. Eliana Maria Piva de Albuquerque Tranchesi morreu em 24 de fevereiro de 2012, aos 56 anos.

O caso Daslu virou um rocambole interminável de processos, que envolvem dívidas com credores, ações trabalhistas e débitos tributários com a Receita Federal e o Estado de São Paulo. Ao final das investigações, a Polícia Federal estimou cerca de R$ 500 milhões apenas em dívidas tributárias. Os advogados da Daslu, no entanto, contestaram débitos e valores, em sucessivos recursos administrativos. O processo virou um novelo com novos lances até hoje e cujos detalhes são protegidos pelo sigilo fiscal.

Esse naco da dívida, em tese, correria o risco de impactar na herança dos três filhos da empresária. Bernardino, Luciana e Marcella Tranchesi chegaram a tocar uma grife, a 284 Brasil (homenagem ao número da casinha na Vila Nova Conceição onde a Daslu começou).

Em 2014, a 284 Brasil fechou, depois de enfrentar ações de despejo por falta de pagamento do aluguel dos espaços que ocupava nos shoppings Iguatemi e Cidade Jardim —débitos que, segundo Bernardino declarou à época, depois foram renegociados. Aos poucos, no entanto, os filhos conseguiram trilhar seus caminhos. Bernardino hoje é consultor de empresas; Luciana e Marcella são influencers.

Na semana passada, o irmão e ex-sócio de Eliana na Daslu, Antônio Carlos Piva de Albuquerque, foi preso. Ele era procurado desde 2013, quando foi condenado a sete anos e oito meses de prisão, por crimes contra a ordem tributária.

A Daslu ainda enfrentou detalhes cinematográficos em outras frentes. Em 2011, em recuperação judicial, acabou vendida para a Laep Investments, do empresario Marcos Elias, que foi dono da Parmalat. Cinco anos depois, Elias vendeu 52% da empresa para o empresário Creso Suerdieck, sócio da gestora de investimentos DX Group. Os dois acabaram brigando na Justiça, trocando acusações sobre não cumprimento de cláusulas contratuais. Até que a Daslu, enfim, morreu de inanição.

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