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Britânica que relatou estupro no metaverso: 'Foi real e perturbador'

A pesquisadora Nina Jane Patel - Divulgação
A pesquisadora Nina Jane Patel Imagem: Divulgação

De Universa, em São Paulo

03/06/2022 04h00

Cabelos loiros na altura dos ombros, olhos claros e até as sardas no rosto: a psicoterapeuta inglesa Nina Jane Patel, 43, criou um avatar com as características mais próximas a sua aparência física para entrar na plataforma de realidade virtual da empresa Meta, que até o ano passado se chamava Facebook. Mas, em menos de um minuto após usar pela primeira vez o recurso, quatro avatares masculinos abusaram sexualmente da sua personagem na rede.

"Eles chegaram muito perto de mim, no início me assediando verbalmente. Depois, começaram a me assediar sexualmente, dizendo todos os tipos de insinuações sexuais possíveis. Então, apalparam e tocaram meu avatar de forma inadequada e passaram a me seguir. Eu dizia: 'parem, por favor, parem'. Mas eles continuaram", contou Nina, que mora no Reino Unido, em entrevista a Universa por ligação de vídeo. "O que aconteceu comigo foi real."

A psicoterapeuta entrou no metaverso —termo usado para ambientes que usam tecnologias como a de realidade virtual, não exclusivamente ligados à Meta— para uma pesquisa. Cofundadora da empresa de tecnologia Kabuni, ela investiga o impacto psicológico e fisiológico dessa tecnologia em crianças e adolescentes de 8 a 16 anos.

O avatar de Nina Jane Patel, que foi atacado no metaverso - Reprodução - Reprodução
O avatar de Nina Jane Patel, que foi atacado no metaverso
Imagem: Reprodução

"Eles me acusaram de querer que eles me assediassem sexualmente, dizendo que essa era a razão pela qual entrei na plataforma e coisas como: 'não finja que não está amando'. Aquilo estava cada vez mais surreal e entrei em pânico", afirmou.

Nina disse que tentou acionar algum comando para voltar à sua área privada, mas, com o nervosismo, não se lembrava mais como fazer isso. "Não consegui colocar os recursos de bloqueio com o tipo de controles manuais, mesmo tendo lido as instruções. A única coisa que podia fazer era tirar meus fones de ouvido enquanto eles continuavam gritando todo tipo de termos sexuais explícitos. Tudo isso durou cerca de três minutos. Foi muito agressivo, perturbador e bastante traumático."

O caso ocorreu em novembro de 2021. Um mês depois, Nina relatou o ocorrido em um texto publicado por ela na plataforma Medium. Em janeiro e fevereiro de 2022, a história foi contada por jornais britânicos e rodou o mundo —ela chegou a receber ameaças e uma infinidade de ofensas machistas após a repercussão do caso.

"Recebi uma infinidade de mensagens e e-mail de pessoas me acusando de ser louca e de arruinar a realidade virtual. Muita gente dizia aquilo não era real, era um mundo virtual. Era fantasia. Questionavam como eu poderia alegar que foi um assédio ou uma agressão. Mas por que, então, eu estava me sentindo daquela maneira? Porque aconteceu e foi real", pontua.

"Tecnologia é projetada para replicar a realidade"

A psicoterapeuta conta que ela mesma se questionou sobre o porquê de ter ficado tão traumatizada mesmo com o episódio tendo ocorrido em ambiente virtual. Pesquisar e analisar o assunto a ajudou a chegar em uma resposta. "Essa tecnologia é projetada para replicar a realidade em termos de imersão, presença e corporificação. Essas são técnicas psicológicas para que meu cérebro aceite o mundo virtual como real, e é isso que torna o metaverso tão atraente", explica. "O avanço foi tanto que as linhas entre o mundo real e o virtual ficaram borradas."

A pesquisadora Nina Jane Patel  - Divulgação - Divulgação
A pesquisadora Nina Jane Patel
Imagem: Divulgação

Ela afirma que o sentimento que teve durante e após a agressão se assemelha a como sentiu em outros episódios de assédio que vivenciou ao longo de sua vida, no mundo off-line.

"Assim como todas as mulheres, fui condicionada a evitar o assédio sexual. Diziam para não usar saias curtas e que as ruas não são seguras —se ando sozinha e sou atacada, a culpa é minha porque escolhi estar naquele ambiente", relata. "Meu cérebro, por estar condicionado a isso, assumiu que fiz algo de errado. Ou que olhei para eles da maneira errada e escolhi o avatar errado. Isso é bastante parecido com outros assédios sexuais."

"Parte de mim, depois deste episódio, só queria fingir que não aconteceu, o que muitas vezes é o caso quando estamos no mundo real. Não queremos que as pessoas saibam porque é embaraçoso, vergonhoso." — Nina Jane Patel

'É necessário sensibilização sobre o tema', diz advogada

Um estudo de 2018 da agência de pesquisa The Extended Mind mostrou que 36% dos homens e 49% das mulheres que usavam regularmente plataformas de realidade virtual relataram ter sofrido algum tipo de assédio sexual.

No Brasil, a organização MeToo Brasil anunciou, no mês passado, sua entrada na Web3 —como é conhecida a tecnologia executada nesses novos ecossistemas, como o metaverso e o NFT— com o lançamento da Me2 DAO —DAO é o nome dado a uma comunidade que une pessoas com interesses em comum executada em tecnologia blockchain (palavra do inglês que significa "cadeia em blocos", em tradução literal, usada para descrever o sistema que faz criptomoedas funcionarem).

A advogada Marina Ganzarolli, diretora do MeToo Brasil e fundadora da Rede Feminista de Juristas, explicou que essa é a primeira DAO no mundo unicamente com o objetivo de enfrentamento à violência contra a mulher.

Marina explica que as desigualdades de gênero são transpostas para o mundo digital: ou seja, não são novas formas de violências, mas utilizam outros recursos e espaços para serem disseminadas.

"Qualquer troca de informação ou de relação, seja ela intermediada por um dispositivo digital ou pessoalmente, vai reproduzir as dinâmicas de poder que nos atingem", afirma.

"Se as relações humanas passam a ser intermediadas por meio de trocas e conteúdo —seja fotos, vídeos, áudios ou texto, como nas redes sociais— temos um desenvolvimento de novos canais de denúncia e de informações, mas, por outro lado, também há novas formas de violência por meio desses dispositivos."

Desde o Marco Civil da Internet, em 2014, leis são pensadas para lidar com o problema, diz a advogada. "Naquele momento, a internet era terra de ninguém: havia muitos posts anônimos sem possibilidade de rastrear o IP de quem postava agressão racista ou machista. Depois, foi possível localizar a autoria para conseguir entrar com uma ação indenizatória, por exemplo. A criação de leis criminalizando a disseminação não consentida de imagem também buscou olhar para isso."

Agora, com a Web3, o metaverso é um dos novos pontos de atenção. "É necessário pensar como vamos fazer o enfrentamento da violência de gênero em um ambiente que simula a realidade. Temos visto que as vítimas de trauma no metaverso têm consequências psicológicas e físicas como se os episódios tivessem ocorrido off-line. O congelamento automático diante da situação, por exemplo, é a resposta mais comum delas."

Por isso, Marina afirma que é necessário pensar, desde já, em algum tipo de reparação para essas violências —ressalta, porém, que a criação de um novo crime não deveria ser a prioridade. "Já temos um bom e amplo arcabouço legal de proteção à violência baseada no gênero. O problema é que, por termos um Judiciário machista, ainda há barreiras para a aplicação correta da lei."

Além da Meta, empresas como Microsoft e Roblox também estão investindo no metaverso, que são universos virtuais (ainda em fase de testes) onde as pessoas vão interagir por meio de avatares digitais. Para isso, as empresas empregam tecnologias como realidade virtual, simuladores 3D, realidade aumentada, redes sociais e criptomoedas.

O que diz a Meta

Em resposta a Universa, a Meta reenviou a nota que havia apresentado quando o episódio foi divulgado por Nina e informou que apresentou uma nova funcionalidade de distanciamento pessoal ("personal boundary", em inglês), que facilita a prevenção de interações como a que Nina sofreu.

"Lamentamos que isso tenha ocorrido, queremos que todos tenham uma experiência positiva no Horizon Venues [plataforma utilizada por Nina], e que facilmente encontrem as ferramentas de segurança disponíveis para ajudá-los (ferramentas que também nos permitem investigar e agir). O Horizon Venues deve ser seguro e estamos comprometidos a construí-lo dessa forma. Continuaremos a realizar melhorias a medida que aprendemos mais sobre como as pessoas interagem nesses espaços, principalmente quando se trata em ajudar as pessoas a reportarem situações de forma fácil e confiável", diz a nota da empresa.

Nina disse que, após o ocorrido, não teve uma resposta direta da Meta.

"Essa resposta para mídia adicionou a possibilidade de estabelecer limites pessoais, o que evita algum nível de assédio físico ao avatar, mas não evita a agressão verbal", observa. "Mas não confio que a plataforma deles esteja priorizando a segurança das mulheres e da nossa saúde mental e bem-estar. É um modelo de negócios estruturado para acumular, coletar e armazenar nossos dados e, depois, manipulá-los para monetização. Não podemos aceitar um sistema tecnológico que não priorize nossa segurança emocional, física e psicológica."

"Todo tipo de palavra que buscamos hoje na internet está moldando o futuro do metaverso. Cada transação online, cada plataforma, cada conversa que se desenvolve nas mídias sociais também está moldando o futuro das realidades virtuais. Precisamos nos tornar mais conscientes disso e reavaliar nossas próprias relações pessoais com a tecnologia."