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'Sou uma mulher trans, tenho que me alistar?' Entenda a lei

O primeiro vídeo de Gabriela Ádie que viralizou no TikTok foi quando ela falou sobre seu alistamento. Hoje, ela é um fenômeno quando o assunto é maquiagem  - Acervo pessoal
O primeiro vídeo de Gabriela Ádie que viralizou no TikTok foi quando ela falou sobre seu alistamento. Hoje, ela é um fenômeno quando o assunto é maquiagem Imagem: Acervo pessoal

De Universa, São Paulo

25/05/2022 04h00Atualizada em 25/07/2022 11h13

O primeiro vídeo que a influencer de beleza Gabriela Ádie, 19 anos, viralizou no TikTok foi o que gravou falando sobre seu alistamento. Gabriela é uma mulher trans e nas imagens conta que a experiência foi tranquila e logo foi dispensada. Mas pode não ser assim para todos. "Eu achei a situação engraçada, não foi algo constrangedor. Tenho o privilégio da passabilidade, que, no mundo trans, significa que eu sou percebida socialmente como uma pessoa cis", disse, em entrevista a Universa.

O alistamento militar é obrigatório no Brasil para todos os homens a partir dos 18 anos. Está previsto no Art 143 da Constituição de 1988. E mesmo que você se identifique como uma mulher trans, precisará ter seus documentos retificados para se livrar do alistamento. Caso contrário, a pessoa deve se alistar nos seis primeiros meses do ano em que completar 18 anos.

Em nota, o Serviço Militar Brasileiro confirma a possibilidade da dispensa, mas pede provas judiciais para que seja realizada. "A mulher trans está isenta do serviço militar inicial (...) Para efetivar a isenção, basta apresentar na junta de serviço militar uma determinação judicial transitada em julgado ou prova cartorial com retificação do registro civil para o sexo feminino".

Uma thread do TikTok que diz: "Fui me alistar e me perguntaram o que eu estava fazendo lá" reúne diversas mulheres trans falando de suas experiências no alistamento militar. Na maioria dos vídeos, elas dão a entender que os oficiais não as identificaram como mulheres trans logo que se apresentaram.

Gabriela, como contamos há pouco, usou uma abordagem diferente em seu vídeo. Apesar de destacar a humilhação que é uma mulher com a transição completa precisar se alistar, ela olhou com humor para a experiência. Nos comentários, enquanto algumas pessoas dizem que sentem muito por ela ter que passar por isso, outras dizem coisas como: "não queriam direitos iguais?" ou "deveria ser obrigatório para todos".

Medo e preconceito

Se até mesmo homens cis heterossexuais ficam receosos com a possibilidade de seguir no processo e fazer o exame físico, que requer ficar completamente pelado em frente a um oficial das forças armadas, esse medo é muito maior para as mulheres trans que não completaram suas transições.

"É constrangedor para toda mulher trans. Hoje em dia, elas começam o tratamento mais cedo e estão femininas mais cedo. Quando chegam para se alistar, sentem medo", diz a psicóloga Pietra de Oliveira, de 42 anos, de Milagres (CE). Até mesmo o juramento da bandeira, obrigatório até para os dispensados, é um baque. "Você fica com vários homens e a bandeira hasteada. É muito constrangedor", diz Keila Simpson, presidente da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais).

"Se a mulher trans ainda não tem o documento retificado e não se alistar, corre o risco de ter problemas com seu CPF, por exemplo. Além de outra série de restrições por não ter o certificado de reservista", diz a advogada Maria Eduarda Aguiar, especialista em gênero e sexualidade. Para Keila, por se tratar de uma determinação da lei, é preciso segui-la. "Como estamos falando de legislação, temos que obedecer a regra, para evitar problemas com a documentação. O que acredito que possa ser feito, como já acontece em alguns estados nos serviços militares, é ter uma atenção especial com essa população que vai se alistar", diz.

Para ela, é importante pensarmos em leis para que pessoas trans do gênero feminino não precisem estar em um espaço como esse, obrigatoriamente frequentado por homens.

O que mulheres trans precisam fazer para serem dispensadas?

Quem não é dispensado no dia do alistamento precisa retornar ao exército para a realização de exames físicos. E se a dispensa só é obrigatória quando seu documento está retificado ou em vias de, há o risco de a mulher ser chamada novamente - apesar de que a tendência é de dispensa. Tanto que, segundo especialistas, é raro que aconteça.

"Nem na época mais antiga escutei relatos de que mulheres trans, já em transição, precisaram passar por exames físicos. Normalmente, elas recebem baixa porque há uma restrição de pessoas trans dentro das forças armadas", diz Maria Eduarda.

Apesar da baixa, participar do evento solene do Juramento da Bandeira, onde todos, convocados e reservistas, ficam de frente para o símbolo nacional e repetem algumas palavras em respeito às forças armadas, segue obrigatório para todos: mulheres trans ou não.

Histórias do passado

A psicologa Pietra de Oliveira contou como foi sua experiência no alistamento. Para o pai dela, aquilo era fundamental para que "se tornasse homem" - Acervo pessoal  - Acervo pessoal
A psicologa Pietra de Oliveira contou como foi sua experiência no alistamento. Para o pai dela, aquilo era fundamental para que "se tornasse homem"
Imagem: Acervo pessoal

"Quando fiz meu alistamento, foi constrangedor. Há 24 era mais difícil. Eu me sentia uma mulher trans, mas ainda era um homem gay. Fui obrigada a me alistar, fiquei nua, fiz aqueles exames inescrupulosos e fui exposta ao ridículo", conta Pietra. Ela relata que poderia ter sido dispensada logo de início, porque não eram permitidas pessoas homossexuais no exército. E mesmo assim, avançou de fase na seleção. "As pessoas riam de mim, zoavam quando eu andava, porque eu já era afeminada. Fui totalmente exposta ao ridículo", diz.

Keila conta que já ouviu casos de uma travesti, há cerca de 40 anos, que precisou se embriagar para conseguir ir até o posto do exército, onde chegou de vestido e maquiada. "Perguntaram a ela porque estava daquele jeito logo na triagem. Ela explicou que não queria ficar ali", conta. Até mesmo sua experiência pessoal não foi boa.

"Me alistei com 17 anos, hoje tenho 57 e precisei fazer o exame físico. Foi constrangedor. Eu já tinha todos os estereótipos de um gay, mas ainda não estava em transição, apesar de me compreender já naquele tempo como uma pessoa trans. Um oficial me chamou de lado e perguntou se eu queria servir, disse que não. E ele me falou que havia a possibilidade de trabalhar na cozinha e na limpeza. Neguei novamente", conta Keila.

Segurança e proteção

Ninguém é obrigado a passar por situações constrangedoras. Para Maria Eduarda, caso seja pedido a realização do exame físico para a mulher trans, onde há a necessidade de nudez, a orientação é se retirar do local e procurar um grupo de apoio.

"Isso é uma violação de direitos humanos. As Forças Armadas não podem punir uma pessoa que saiu do local para evitar uma situação constrangedora que não é obrigada passar", diz.

Nesse caso, por ter interrompido o processo, vale procurar a instrução de um advogado para saber como seguir com os próximos passos.