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'Me senti humana': empresa ajuda funcionários trans a mudarem nome

Issabela tem 25 anos e está alterando seus documentos para que tenham seu nome social com a ajuda de seu empregador  - Divulgação
Issabela tem 25 anos e está alterando seus documentos para que tenham seu nome social com a ajuda de seu empregador Imagem: Divulgação

De Universa, São Paulo

19/05/2022 04h00

Quem vê Issabela Reis, de 25 anos, trabalhando como Analista de Gente & Gestão pode até pensar que a construção da sua carreira foi algo fácil. Afinal, tem um cargo de destaque em uma empresa como a Ambev. Mas não foi nada disso. Para chegar onde chegou ela precisou passar anos no telemarketing, único lugar que dava oportunidade para pessoas diversas, sofrer transfobia em processos de promoção e se sentir desconfortável na busca de novos empregos. É só agora, com a ajuda de seu atual empregador, que está conseguindo retificar seus documentos e deixá-los com o nome correto.

Nascida em Santa Catarina, mas criada em São Paulo, ela começou sua jornada no mundo corporativo ainda como pequena aprendiz - ainda antes de sua transição. "Eu trabalhava com processos de pessoas físicas e jurídicas", conta Issabela em entrevista a Universa. Por causa de sua boa performance, sempre era indicada para posições em outras empresas quando surgiam oportunidades. "Fiquei dois anos na Caixa Econômica, depois fui para a JBS Friboi, quando passei seis meses trabalhando com recrutamento e outros seis com segurança do trabalho", diz Issabela. Esse foi o primeiro contato que teve na área com a qual seguiria carreira.

Depois de dois anos na empresa, e com oportunidade de atuar em outras áreas, Issabela decidiu prestar vestibular, para tentar ingressar em uma faculdade pública. Aprovada no curso de Gestão de Pessoas, ela foi para Sertãozinho estudar mais sobre a profissão que gostaria de ter.

Transição e falta de oportunidade

"Dentro da faculdade, comecei a estudar melhor sobre gênero e feminismo. Ainda não tinha feito a minha transição completa, mas já estava iniciando o processo. Tive uma palestra com uma professora trans, a Megg Rayara, e consegui me enxergar melhor e ver possibilidades na minha existência por causa das experiências dela", conta. Por um tempo, Issabela se enxergou como não binária e não gostou de rótulos. Foi com o tempo que ela foi se vendo como uma mulher trans. Inclusive, carrega tatuado no peito a palavra "travesti".

"Não foi fácil fazer a transição. O processo foi duro psicologicamente, para me entender, me colocar em um lugar no mundo. Existe um privilégio em ser cis e não é simples sair da zona de conforto"

A partir disso, ela passou a encontrar todo o tipo de dificuldade. Ela precisava trabalhar para se manter estudando, mas as oportunidades não vinham. "Só consegui em telemarketing, que é uma área que contrata pessoas diversas. As empresas no interior eram preconceituosas e tradicionais", diz.

Falar o nome social em suas entrevistas era uma questão, pois na época Issabela ainda não tinha o documento retificado. "Nem sabia se podia colocar no CV, mas eu já me arriscava", conta. Dos quatro anos de graduação, ela trabalhou nessa área por três anos. Logo no primeiro ano, já foi reconhecida como uma das melhores 100 funcionárias da empresa.

"Estava muito motivada. Decidi participar de um processo seletivo para ser gestora", conta. Após algumas etapas, a recrutadora responsável da empresa a chamou em uma sala para uma conversa, onde Issabela diz que sofreu transfobia sem nenhum pudor.

"Ela fez vários questionamentos transfóbicos na minha cara. Me perguntou se eu me via fazendo uma apresentação para a diretoria por causa do jeito que eu me vestia e me apresentava. Para ela, ser travesti configurava algo vulgar. Ela travou meu processo e depois me tirou da seleção. Fiquei indignada"

Na rua, Issabela até esperava esse tipo de tratamento. No trabalho, onde se dedicava tanto, não. "Tentei questionar o RH, mas não tive retorno", conta. Então, ela decidiu sair desse emprego, mesmo sem nada em vista. Sentiu que a situação prejudicou sua saúde mental. Não tinha mais vontade de sair, só queria ficar em casa.

Oportunidade na internet

Precisando de dinheiro para finalizar seu curso, a busca por um emprego recomeçou. "Me candidatava todos os dias para várias vagas. Foi um processo bem cansativo com a duração de três meses. Não fui chamada para nenhuma entrevista. A dificuldade foi surreal", conta. Ela até encontrou uma outra empresa de telemarketing, mas dessa vez, queria seguir em sua área. "Via pessoas cis conseguindo. Por que eu não?", questiona.

O jogo virou quando se deparou com Maite Schneider no Linkedin, co-fundadora da plataforma Trans Empregos. Maite respondeu a mensagem de Issa no Instagram e a ajudou com CV e indicações. "Fui procurada por diversas empresas e foi assim que cheguei na Ambev", diz. Na época de vacas mais gordas, Issabela encheu seu quarto com post it ? s coloridos para poder enxergar qual oportunidade fazia mais sentido naquele momento. Acabou em dúvidas entre duas: sua empregadora atual e um banco digital. Foram dois meses de entrevistas.

"O banco digital, no meio do processo, trocou a minha vaga para uma área mais tecnológica. Não sei se eu estava enviesada, mas na hora senti que estavam, mais uma vez, me colocando no lugar de perfis diversos na área de atendimento. Hoje como recrutadora, entendo a mudança"

Ela acabou recusando essa vaga e contratada na Ambev. "Me senti acolhida. Na minha última entrevista, pude falar das minhas dores, da transição, de como eu enxergo o mundo. Não precisei performar nada além de ser como eu sou", conta. Hoje ela é Analista de Gente & Gestão e parte do Comitê de Diversidade e Inclusão.

Me chame de Issabela

Ainda sem todos os documentos alterados, Issabela entrou para o programa chamado "Me chame pelo meu nome (e pronome também)", e com a ajuda do advogado da empresa, está fazendo todos os trâmites necessários para que seja uma mulher também nos documentos, pois na vida ela já é.

"Eu alterei dentro da proposta do governo, mas ainda tem meu nome civil no documento. Já estou no processo e no próximo mês devemos ter uma evolução",

Feliz com a iniciativa, ela disse que nunca imaginou receber este tipo de tratamento de seu empregador. "É uma questão muito humanitária do corpo trans, de enxergar a possibilidade da nossa existência. Me senti humana", completa.