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Ela perdeu irmão e quer levar caso de transfobia à Justiça internacional

Carlos Brandão tinha 38 anos quando morreu, em 2017 - Arquivo pessoal
Carlos Brandão tinha 38 anos quando morreu, em 2017 Imagem: Arquivo pessoal

Mariana Gonzalez

De Universa, em São Paulo

14/05/2022 04h00

Há cinco anos, Carlos Brandão, 38, foi vítima de transfobia ao ser brutalmente agredido enquanto andava na rua em Duque de Caxias (RJ). Depois, foi levado a um hospital onde, de acordo com a irmã, a advogada Elen Santos, 40, passou por mais violência. Segundo ela, durante um mês, Carlos foi submetido a maus-tratos, negligência médica e privação de comida e água, além de abusos psicológicos.

"No CTI [Centro de Terapia Intensiva], ele foi tratado com dignidade. Mas, depois, foi levado para a enfermaria, onde se tornou alvo de todos os requintes de crueldade relacionados à transfobia institucional que se possa imaginar", afirma Elen em entrevista a Universa. Nas fotos feitas por ela na época, o irmão aparece com os ossos aparentes de tão magro, feridas abertas e o quadril coberto por fezes e urina. Carlos morreu em 13 de novembro de 2017.

A irmã, que na época era estudante de direito, levou o caso ao MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro) e à ONU (Organização das Nações Unidas). Um ano depois, em 2018, o MP arquivou o caso alegando falta de provas.

a advogada Elen Santos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Elen Santos perdeu o irmão em 2017: objetivo é levar denúncia a cortes internacionais
Imagem: Arquivo pessoal

A história de Carlinhos, como era conhecido, é tão emblemático que, em 2019, quando o STF (Supremo Tribunal Federal) votou pela criminalização da homofobia e da transfobia, o nome dele foi citado pela advogada Maria Eduarda Aguiar no Supremo como exemplo de transfobia institucional.

Hoje advogada, Elen contesta a decisão da promotoria —"existem provas de que meu irmão sofreu sim negligência médica", entre imagens, áudios dele e testemunhas— e não descarta a possibilidade de tentar desarquivar o caso. Pensa, também, em levar a história para cortes e organizações internacionais. "Minha vida é estudar para ter condições de proteger outras pessoas, para que não exista outro Carlinhos".

"Meu irmão me pediu ajuda para morrer"

Universa teve acesso a fotos feitas por Elen durante a internação de Carlos no Hospital Adão Pereira Nunes, em Duque de Caxias, na época administrado pela Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, que mostram seu estado. A decisão de não publicar as imagens tem o objetivo de preservar a dignidade da vítima de sua sua família.

Nas fotos, ele aparece extremamente magro, o que aponta para um quadro de desnutrição, com ossos aparentes no colo e no quadril, e também com feridas abertas pelo corpo —segundo Elen, consequências da negligência do hospital, já que Carlos teria passado dias na mesma posição, sem ser virado na maca ou higienizado por enfermeiros.

Em outras fotos, ele aparece com fezes e urina espalhados pela região do quadril até o joelho, na parte de trás do corpo e sobre lesões abertas. Há, ainda, imagens em que ele aparece amarrado na maca e em que é possível ver sua mão muito inchada, com um acesso que, segundo a denúncia, estaria mal colocado.

Carlos também era tratado com frequência por pronomes femininos e tinha seu nome social desrespeitado por profissionais do Hospital Adão Pereira Nunes, afirma Elen.

"Comecei a ter a percepção de que, além de ter sido vítima de um crime de ódio na rua, ele continuava sendo vítima de transfobia no tratamento que lhe era dado no hospital", fala.

Ela conta ainda que sempre havia comida acumulada ao lado da cama. "Deixavam lá. Mas ele não tinha condições de comer sozinho e não o ajudavam", relata.

"Um outro dia, quando fui visitá-lo, ele pediu para eu chegar bem perto, e perguntou: 'Você me ama?'. Respondi: 'Você sabe que sim'. E ele falou: 'Então prova. Me dá chumbinho. Não estou aguentando mais'. Ele me pediu para morrer", lembra Elen, emocionada ao relembrar o diálogo.

"Disseram que ele deveria apanhar como homem"

A reportagem procurou a Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, que era responsável pelo Hospital Adão Pereira Nunes em 2017. Segundo a instituição, Carlos deu entrada no local com "quadro clínico grave, apresentando traumatismo craniano encefálico, sem identificação e não verbalizando".

Elen conta que seu irmão foi encontrado inconsciente, durante a madrugada, se sufocando com o próprio sangue. Quando recuperou a consciência, relatou à família ter sido agredido por pessoas que moravam na vizinhança e que já haviam cometido injúrias transfóbicas contra ele.

Pouco antes das agressões, os agressores teriam feito ameaças a Carlos: "Disseram que, se meu irmão queria ser homem, teria que apanhar como se fosse um", lembra Elen.

As agressões físicas sofridas por Carlinhos são investigadas pela 60ª DP, em Duque de Caxias. A Universa, a Polícia Civil informou que identificou dois suspeitos e que eles foram chamados para depor, mas não compareceram. A última movimentação aconteceu há menos de um mês, mas detalhes não foram revelados porque, segundo a polícia, o sigilo é importante para o decorrer das investigações.

"Desumanizaram meu irmão. Nunca vou esquecer"

Ainda quando Carlos estava internado, Elen pediu ajuda à ONU Mulheres. Universa teve acesso aos e-mails trocados com o órgão. Depois de uma intervenção da ONU, o MP autorizou a transferência de Carlos para um outro local, o Hospital Estadual Alberto Torres —a informação é confirmada no inquérito do caso.

"Nesse segundo hospital, meu irmão foi muito bem tratado, mas já era tarde demais. Depois de cinco dias, ele morreu."

Universa teve acesso ao atestado de óbito de Carlos que define como causas da morte "pneumonia, hemorragia das meninges, lesão cerebral e complicações clínicas de ação contundente".

"Passei esses anos todos repassando na minha cabeça tudo o que aconteceu para saber se tinha algo mais que eu poderia ter feito para salvá-lo. Nunca vou esquecer o que aconteceu. Eles desumanizam meu irmão."

"Houve transfobia institucional", diz advogada que citou caso no STF

Em 2019, menos de dois anos após sua morte, Carlinhos teve seu nome citado no STF (Supremo Tribunal Federal) na ocasião da votação pela criminalização da homofobia e da transfobia. Quem levou sua história a Brasília foi a advogada Maria Eduarda Aguiar.

A Universa, ela diz que o caso de Carlos é emblemático porque, "além de ter sofrido transfobia ao ser agredido por ser um homem trans, ele também foi vítima da transfobia institucional, com negligência do Estado em seu tratamento".

"A transfobia ainda é um obstáculo no atendimento acolhedor à saúde das pessoas trans, principalmente em casos de internação. O cenário é o pior possível: ainda penamos para ter atendimento especializado, acesso a medicamentos, entre outras coisas", fala a advogada.

Ao ouvir o nome do irmão no Supremo, Elen se emocionou: "Cheguei a passar mal de tão abalada que fiquei. A gente tem que dar nome, rosto e voz aos que foram calados e caladas neste país. A morte do meu irmão não pode ser em vão".

Hoje, Elen atua como advogada e ativista na Aliança Internacional LGBTI e no coletivo Transbordamos, que ajudou a fundar na cidade em que vive, São José dos Campos (SP), e presta assistência a pessoas trans da região.

Além disso, estuda os processos de julgamentos da Corte Interamericana de Direitos Humanos, para onde pretende levar o caso de seu irmão.

MP e Secretaria de Saúde arquivaram o caso

O MP-RJ, que registrou as denúncias de Elen por meio da 2ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva da Saúde, chegou a investigar se houve improbidade administrativa por funcionários do Hospital Adão Pereira Nunes e confirma que interveio pela transferência de Carlos para um segundo hospital.

O caso, no entanto, foi arquivado em agosto de 2018 por "inexistência de indícios de conduta dolosa" e "impossibilidade de concluir pela prática de atos de improbidade", informa o inquérito, ao qual Universa teve acesso.

A Secretaria Estadual de Saúde, que respondia pelo hospital na época, informou que instaurou uma sindicância para apurar as denúncias em relação à internação de Carlos, mas que, após analisar o boletim de atendimento médico e os prontuários do paciente, "não foi identificada conduta que caracterizasse maus-tratos, desassistência ou negligência no atendimento prestado a ele".

Universa questionou a afirmação, que contradiz as fotos feitas por Elen durante a internação do irmão, mas não teve resposta até a publicação desta reportagem —o espaço continua aberto caso a pasta ainda queira se manifestar.

Sobre o fato de Carlos ter sido identificado como mulher e tratado no feminino, a Secretaria Estadual de Saúde disse que quando ele deu entrada no hospital não tinha documentos e estava inconsciente, por isso foi tratado dessa maneira. Diz que após identificação da família, que informou a identidade de gênero dele ao hospital, passou a ser tratado pelo nome social e pelos pronomes masculinos.

Por fim, ressaltou que "repudia qualquer ato de preconceito e violência e vem realizando inúmeras capacitações, criações de fluxos e melhorias no atendimento prestado à população", incluindo "a orientação para que todas as unidades da rede estadual de saúde respeitem o direito ao uso do nome social em toda a documentação dos pacientes".