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RS: Pessoas não-binárias ganham direito a mudar nome e gênero em cartórios

Angelix se identifica como pessoa não-binária e conseguiu mudar seus documentos - arquivo pessoal
Angelix se identifica como pessoa não-binária e conseguiu mudar seus documentos Imagem: arquivo pessoal

Fernanda Canofre

Colaboração para Universa, de Porto Alegre

29/04/2022 04h00

O celular de Angelix Oliveira Borsa, 30, de Porto Alegre, recebeu uma notificação de mensagem no WhatsApp, durante a chamada de vídeo que tinha marcado com seu grupo de pesquisa em meados de março. Angelix leu, desligou a câmera e o microfone, e passou a pular pelo quarto celebrando a notícia recém-chegada: a sentença definindo que poderia alterar a palavra no campo de sexo/gênero e seu nome no registro havia finalmente saído, depois de cerca de cinco meses de processo.

Ao menos no Rio Grande do Sul, porém, o caminho pode se tornar mais prático graças a uma medida pioneira do Tribunal de Justiça do estado com um provimento assinado na última sexta-feira (22), e publicado essa semana. O texto determina que cartórios podem alterar primeiro nome, gênero e incluir o termo "não-binário" sem necessidade de autorização judicial, em casos de pessoas maiores de 18 anos.

Segundo a Arpen-Brasil (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais), há decisões individuais de juízes autorizando a alteração de registros de pessoas não-binárias e ações coletivas no país, mas a medida da Justiça gaúcha, padronizando as regras e dando autorização geral para o ato em cartórios, é a primeira sobre a qual tiveram conhecimento.

"Ser reconhecido legalmente é inquestionável"

A sentença que permitiu o reconhecimento de Angelix como pessoa não-binária - que não se identifica com gênero masculino ou feminino - é uma das nove que tiveram decisão com trânsito em julgado até o momento, em processos abertos por um mutirão da ONG Somos, de Porto Alegre. Outras 16 pessoas esperam a tramitação. Os processos de duas pessoas foram extintos devido à medida do TJ e já poderão fazer suas retificações diretamente em cartório.

"É como se eu tivesse quebrado uma parede que me impedia de acessar o mundo. Para assinar um contrato, emitir uma nota, ir ao médico, eu ainda tinha que acessar o mundo pelo nome antigo. Agora é como se nós tivéssemos quebrado isso".

Desde 2014, Angelix se identifica pelo gênero que não constava em seus documentos até então. "Eu chorei sem parar durante 25 minutos. Eu pulava pelo meu quarto, chorava e mandava mensagem para meus amigos dizendo: 'meu Deus, saiu, eu sou eu'. Foi uma catarse", conta, em entrevista a Universa.

Angelix apresentou declarações de cinco pessoas - a mãe, amigos e a psicanalista - para afirmar sua identidade perante à Justiça. O processo, pensava, seria longo, acarretando desgaste emocional e financeiro, por isso, o mutirão da Somos apareceu como sua oportunidade.

"Ser reconhecido legalmente é inquestionável. Se as pessoas disserem: mas é teu nome de verdade? Sim, está na minha certidão de nascimento. É uma validação de quem eu sou, vai além de ser reconhecido socialmente, vai para meu CPF, meu Lattes, meu cadastro no banco, essa é a potência disso", diz.

"Posso mostrar minha certidão"

Duda mudou seu registro com ajuda do mutirão da ONG SOMOS - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Duda mudou seu registro com ajuda do mutirão da ONG SOMOS
Imagem: arquivo pessoal

"O gênero sempre foi algo muito difícil para mim. Eu não entendia por que não podia brincar de boneca, de cozinha, de maquiagem. Todos esses estereótipos me deixaram muito confusa, não me sentia muito confortável ou pertencente à categoria homem, mas ao mesmo tempo eu também não me sentia confortável em me dizer mulher. Sempre me senti nesse limbo", conta Duda Anhaia Castro, 25, estudante.

Quando começou a estudar gênero, no curso de Ciências Sociais, na UFRGS, Duda passou a entender que o que sentia não era estranho ou incomum e que não era preciso se conformar entre os dois.

"Pode não caber em nenhuma dessas duas caixinhas, pode caber em ambas ou pertencer apenas em parte a uma delas. Ser uma pessoa não-binária tem um significado muito diverso, não tem uma resposta simples, que dê para compreender 100%, assim como não tem resposta simples para dizer o que é homem ou o que é mulher", diz.

Duda também está entre as pessoas atendidas pelo mutirão e que conseguiram a decisão favorável à retificação, assim como Muriel Mazhi Ribeiro Knackfuss, 21, que trabalha com gastronomia e buscava entender sua identidade havia cerca de quatro anos.

Sem se ver em uma narrativa feminina, mas também sem se entender como homem, Muriel passou a se afirmar pela identidade não-binária depois de conhecer outras pessoas com a mesma identidade de gênero e aprender mais a respeito.

 Muriel Mazhi Ribeiro Knackfuss, cozinheiro, 21, - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Muriel também obteve decisão favorável à retificação de nome e gênero
Imagem: arquivo pessoal

"Mesmo sendo um grande processo, uma demora, é um sentimento muito bom. Posso mostrar minha certidão. Mas é triste pensar que, às vezes, nem o próprio Estado pensa na gente, que a gente não existiria se não fosse essa decisão".

"Judiciário deve acompanhar a evolução das relações", diz Justiça

O Corregedor Geral de Justiça Giovanni Conti, responsável por assinar a decisão, afirma que "o Poder Judiciário deve acompanhar a evolução das relações humanas, respeitando a vontade dos cidadãos quando do registro civil reconhecendo a pluralidade identitária da sociedade brasileira".

Uma publicação da Defensoria Pública gaúcha explica que a não-binariedade é a identidade das pessoas que se identificam fora da lógica binária dos gêneros masculino ou feminino, mas que, dentro dela, há identidade agênero (sem gênero), gênero neutro, bigênero (quando a pessoa experiencia os dois gêneros) ou ainda outras identidades fora do binário.

Enquanto pessoas trans binárias - que se definem pelo gênero masculino ou feminino - costumam conseguir a retificação de registros direto em cartórios, desde o julgamento de uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) no STF (Supremo Tribunal Federal) e um provimento do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), pessoas não-binárias, ainda dependem de judicialização para obter a mudança.

A determinação no RS partiu de um pedido apresentado pela defensora pública Aline Palermo Guimarães, que dirige o Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos. Nele, a Defensoria pedia que fosse reconhecido o entendimento firmado no STF e no CNJ, sobre a retificação de prenome e gênero, também para pessoas não-binárias. "É um avanço extremamente importante no reconhecimento de diferentes identidades de gênero e que certamente impactará na vida de muitas pessoas", diz ela.

Provocar o Judiciário a pensar sobre a demanda das pessoas precisando desses processos era uma dos objetivos do mutirão feito pela ONG.Caio Klein, diretor-executivo da Somos, lembra que, no provimento, o TJ-RS diz levar em consideração "as decisões judiciais que têm reconhecido o direito do registro civil da identificação não-binária de gênero".

"Agora persiste um problema no qual a gente vai trabalhar, que é o fato de que muitas pessoas, sejam trans ou não-binárias, não têm acesso a esse direito mesmo extrajudicialmente, nos cartórios, pois o Judiciário não reconhece a gratuidade de todos os documentos necessários para isso", diz ele.