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Abuso suavizado e machismo: sexólogas analisam filme '365 Dias: Hoje'

Os abusos continuam na segunda produção do filme "365 Dias", mesmo que de forma suavizada - Divulgação
Os abusos continuam na segunda produção do filme "365 Dias", mesmo que de forma suavizada Imagem: Divulgação

Rafaela Polo

De Universa, São Paulo

29/04/2022 17h04

Desde o lançamento da primeira produção de sua trilogia, o filme "365 Dias" dividiu opiniões. Teve gente que chamou a atenção para falta de roteiro, a abordagem machista ou para as cenas de sexo ousadas e exageradas para um conteúdo que não é pornô - mas beira a isso. Mas o filme também conquistou muitos fãs e ficou entre os mais vistos da Netflix.

Em seu segundo filme, que estreou dia 28 deste mês na Netflix, a história retoma do casal Massimo (Michele Morrone) Laura (Anna-Maria Sieklucka) e já está no topo ranking das produções da plataforma de streaming essa semana. E o longa segue dividindo a audiência. Universa conversou com sexólogas e especialistas em sexualidade feminina que chamaram a atenção para cenas de que remetem a um relacionamento abusivo e também ao tom machista do filme.

*Atenção: esse texto contém spoilers.

Na trama polonesa Massimo sequestra Laura e mantém ela contra sua vontade em sua mansão. Mesmo nessa situação completamente adversa, os dois passam a viver uma relação.

No primeiro longa, fica difícil saber se o relacionamento dos dois é carnal ou se, em algum momento eles passaram a desenvolver sentimentos um pelo outro. O que a gente assiste é um sequestrador basicamente forçando sexo. Mas Laura também se atrai pelo cara e fica excitada com as possibilidades do sexo.

Desta vez, no segundo filme da série, Laura está grávida será novamente sequestrada. O criminoso da vez é um adversário de Massimo.

Abusos suavizados

Se no primeiro filme ficava claro como Massimo tratava a Laura de forma abusiva, no segundo, quem assistiu sentiu que aconteceu uma amenizada no comportamento inadequado do personagem. "No primeiro filme, os abusos eram muito evidentes. A impressão que me deu é que eles tentaram suavizar trazendo a relação em formato de dominador e submissa como se tivesse dado certo, tentando mostrar que os dois estão em harmonia e querem a mesma coisa", diz Julia Franco, especialista em sexualidade feminina e proprietária do e-commerce Lua e Sol Eróticos.

No primeiro longa, era evidente a vontade de ir embora de Laura. "Para mim, essa mudança é delicada, porque você constrói no imaginário das mulheres que sofrem violência que o abusador pode mudar", completa.

Mesmo assim, Massimo ainda se mostra apenas focado no sexo, o que mostra um lado imaturo e superficial do personagem. De presente de Natal, ela dá para ele uma noite em que pode fazer o que quiser com ela. Tem algemas a disposição, três vibradores - um rabbit, uma varinha mágica e um plug anal - que ele usa durante o sexo. "É instigante e excitante, mas fica perdida no contexto. Assim que eles acabam, e ela quer falar sobre família, ele levanta e vai embora, como se só o sexo fosse o suficiente para relação", diz Laura. Nenhum relacionamento vive apenas disso. É preciso muito mais do que orgasmos para um casal se manter junto.

Para a sexóloga Lelah Monteiro, o filme reforça padrões antigos de sedução. Que podem ainda ser interessantes para algumas mulheres, mas não para novas gerações. "O que eu acho mais machista é ele não dar espaço de voz para ela. Ela se envolve, é seduzida, fica confusa, mas falta diálogo, falta a atitude dela. Laura fica encantada com esse príncipe e sonhando com os jogos da sedução dele", diz a especialista.

"Isso ainda seduz muitas mulheres, mas para novas gerações está muito distante do que foi conquistado. E se a protagonista fosse mulher? Por que esse padrão tão heteronormativo e tão machista?", questiona.

"Tem muitas cenas de sexo explícito que algumas mulheres têm colocado para serem realizadas. Mas o machismo permanece e a violência também. Ela é tolhida e não pode ter identidade própria. O Massimo interfere até em sua vivência com as amigas", diz Carolina Freitas, Mestre em Psicologia e especialista em Sexualidade da Plataforma Sexo sem Dúvida.

A violência, a especialista explica, não é só física. "É também a obediência do jeito de se vestir, de fazer sexo e de se portar, que segue acontecendo nesse filme. Mais romantizado que o primeiro, mas ainda assim, um tipo de violência", diz.

Cuidado ao usar o filme como inspiração

Massimo, do filme "365 Dias" pode proporcionar cenas excitantes com Laura, mas ainda mostra um modelo problemático de relação - Divulgação - Divulgação
Massimo, do filme "365 Dias" pode proporcionar cenas excitantes com Laura, mas ainda mostra um modelo problemático de relação
Imagem: Divulgação

Ver cenas de sexo, com prazer evidente, e manobras diferentes do que estamos acostumadas em nosso dia a dia, pode ser excitante, sim. "A cena mais interessante, na minha opinião, é a primeira de sexo que acontece na Lua de Mel. Nela, Laura propõe uma brincadeira: ela amarra os braços de Massimo com sua meia calça e se masturba em frente a ele, se mostrando dona de seu prazer", diz Julia.

O filme pode ser um incentivo para novas ideias de prazer na cama, claro, se for observado apenas como isso: fonte de inspiração "Vale para casamentos longos, para dar uma sacudida. É um filme erótico, um pornô leve. A grande problematização é o fetiche do cara milionário, de achar que pode tudo devido à sua condição econômica", diz Lelah. O filme "365 dias" repete um padrão que vimos antes em "Cinquenta Tons de Cinza", mas de uma forma mais agressiva.

Carolina, inclusive, alerta: pode ser um gatilho. "Tem algumas experiências sexuais que podem, sim, servir de exemplo. Mas também podem ser gatilhos para mulheres que já foram vítimas de violência", alerta a especialista.