Missionária resgata crianças em situação de vulnerabilidade no Camboja
"Eu sempre trabalhei como voluntária e missionária. No início, em Belo Horizonte, atuei com mulheres prostitutas e o nosso trabalho era a valorização delas independentemente da profissão. Venho de uma família muito engajada em trabalho social, cresci nesse ambiente e me vejo responsável por fazer mudanças.
Um dia assisti a um documentário sobre a indústria têxtil que mostrava como as pessoas que faziam roupas eram exploradas. A produção se passava no Camboja e eu fiquei com aquilo na cabeça. Pensei que podia fazer algo mais por aquelas crianças. Chamei o meu marido e disse que nós precisávamos ir para lá.
A princípio, ele pensou em ficar um mês, mas eu falei que era para viver. Fizemos um trabalho em Mariana (MG), após a barragem estourar, e em seguida pensei que poderíamos ser úteis no Camboja. Foi então que embarcamos para o país seis anos atrás e agora moramos aqui definitivamente. Não conhecíamos nada e fomos tentar entender um pouco da cultura e do idioma.
Quando chegamos lá, já fomos atrás de lugares que atuam como zonas de prostituição e são chamadas de karaokê e casas de massagem. O nome prostíbulo é banido aqui. Primeiro ficamos na cidade de Siem Reap e depois fomos para Sihanoukville.
'Prostituição é financiada por estrangeiros'
Começamos a tentar fazer nosso trabalho e conhecemos uma galerinha jovem que dizia que tinha vontade de trabalhar com crianças. Nós oferecemos nossa casa e começamos a fazer um trabalho de apoio a elas. Percebemos que a prostituição começa muito antes e para algumas crianças ainda era mais difícil. Ouvimos histórias de que algumas eram trocadas por um saco de arroz. A gente passou por uma situação de quererem vender um filho para nós.
Não é uma cultura cambojana. É um país que está em reconstrução e existe ainda um resquício do genocídio. Mas percebemos que quem mais financia esses bares de prostituição é o estrangeiro. Ele vê na vulnerabilidade uma oportunidade. E muitas mulheres não têm noção de que podem ser estupradas e violentadas na rua.
No começo foi muita informação para a gente. Quando mudamos para uma outra cidade, começamos, de fato, o trabalho contra a prostituição. Fomos entendendo o papel dos aliciadores e dos abusos.
Nós desistimos da ida ao prostíbulo e percebemos que socorrer as crianças quebraria um ciclo. Percebemos que poderíamos fazer diferente. Quando ainda estávamos em Sihanoukville, algumas crianças vinham para nossa casa aprender inglês e fazer uma refeição. Ali, conhecemos algumas histórias e vimos que precisávamos de mais.
'Criamos nossa ONG e hoje temos uma casa-lar'
Desde 2016, criamos nossa ONG e a chamamos de Safe Place (lugar seguro, em inglês). Em 2018, abrimos nossa casa-lar em Kampot. O abrigo funciona como um local permanente e não tem rotatividade.
Atualmente, existem 15 crianças e elas chegaram desde a fundação. O mais comum eram crianças que vinham de locais de risco e famílias em situação de vulnerabilidade.
Aqui, eles vão para a escola privada, que é bilíngue, aprendem português e têm refeições.
A ideia é chegar a 30 crianças auxiliadas. Quando chegarmos a esse número, vamos abrir uma nova unidade. Elas precisam se desenvolver, ir para o mercado de trabalho e ter uma vida.
Também tentamos ajudar indiretamente e, sempre que recebemos uma denúncia, vamos até o local checar a veracidade do fato e chamamos autoridades locais. É um trabalho muito sério e de muito cuidado.
'As crianças não sabem o que é um abraço'
Existem diversas histórias que nos chamaram atenção, mas teve uma em específico que me marcou muito. Recebemos a denúncia de um menininho e fomos verificar o caso. Ele morava praticamente sozinho e só tinha um avô, que tinha sido atingido por uma bomba e tinha marcas no corpo. Mas o menino vivia sempre na rua, tinha feridas nas costas e dormia dentro de um saco de arroz. Denunciamos e as autoridades entenderam que era uma situação de risco.
Mesmo tendo cinco anos de idade, ele não falava ainda, andava igual a um cachorro e só queria saber de dormir do lado de fora. Ele parecia o Mogli. Estamos com ele há um ano e três meses e essa foi uma das crianças que mais me marcaram. Quando o levamos ao médico, o profissional disse que ele aparentava ter cinco anos, mas provavelmente tinha mais idade. Porém, devido ao processo de desnutrição, ele não se desenvolveu tanto física quanto intelectualmente.
É bem difícil ver essas situações. Toda nossa equipe precisa de atendimento psicológico, pois não é fácil. São histórias de crianças que vieram de traumas, que não têm amor, não têm afeto e não sabem o que é um abraço. É muito bonito ver o quanto essas crianças crescem nelas mesmas.
'A educação liberta'
Nosso sonho é nos estabelecermos aqui mesmo no Camboja. Quero abrir um instituto educacional, com uma base bem sólida e acolhendo crianças que vieram de situação de risco ou que jamais tiveram acesso a uma boa educação.
Muitas delas estão na sétima série e não sabem nem ler e nem escrever. Eu acredito que a educação liberta.
O trabalho é difícil, hoje todo nosso recurso vem de fora e 70% são de doadores. São diversos colaboradores que reconhecem nosso trabalho. Nosso objetivo, no futuro, é receber ainda mais crianças."
Quésede Egehr, 37 anos, criadora da ONG Safe Place em Kampot, no Camboja
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