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Falso médico é acusado de 'golpe do amor': 'Dizia ter coágulo no cérebro'

Segundo a polícia, Guilherme Selister enganava vítima para obter vantagem financeira. - Reprodução
Segundo a polícia, Guilherme Selister enganava vítima para obter vantagem financeira. Imagem: Reprodução

Franceli Stefani

Colaboração para Universa, de Porto Alegre

08/04/2022 04h00

Uma curtida em uma foto no Instagram da gaúcha Marcela*, 32, a fez ir até o perfil de Guilherme Selister, 27, no final de 2019. O que era uma interação despretensiosa na rede social virou um relacionamento. Ele a conquistou dizendo querer uma família e sucesso na carreira, falava que era ex-militar, médico, especialista em cardiologia, funcionário de dois hospitais e dono de uma clínica no Rio Grande do Sul. Sete meses depois, porém, ao fim do namoro, Marcela se deu conta de que viveu uma história repleta de mentiras e havia sido vítima de um golpe em que perdeu R$ 80 mil. E, segundo ela, não foi a única.

Marcela denunciou Selister por estelionato em 2020. A investigação se estendeu até janeiro deste ano, e a polícia o indiciou no dia 29 de março, concluindo que há provas para abrir um processo criminal contra ele. Segundo o titular da Delegacia de Polícia de Farroupilha (RS), delegado Éderson Bilhan, à frente do caso, Selister "enganou a vítima para obter vantagem financeira".

Ele mentia sobre suas profissões —já se passou por nutricionista, veterinário e engenheiro, segundo a polícia— para ganhar a confiança da mulher. Quando isso acontecia, revelava que tinha uma doença neurológica e precisava de um procedimento cirúrgico. O homem falava às vítimas que receberia um pagamento de R$ 140 mil em uma ação e mostrava um documento com o símbolo do TJ-RS (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul), informando a quantia. "Mas a ação nunca existiu. Fazia parte da história enganosa que ele criou", afirma o delegado.

Mentiras e falso interesse

Em conversa com Universa, Marcela contou sua história. Após a interação pelo Instagram, os dois começaram a conversar por WhatsApp e, logo, estavam namorando. Ela tinha economias guardadas quando conheceu aquele que pensou que se tornaria seu companheiro.

Namoraram por cerca de sete meses. Foi nos primeiros meses de 2020 que, depois de entender que havia o vínculo de confiança estabelecido, ele abriu a vida pessoal à vítima. "Na época, contou que não permaneceu na Marinha devido aos traumas que sofreu durante o período, desde tiros em conflitos até espancamento. Uma dessas lesões teria gerado um coágulo no cérebro e, então, precisaria de uma cirurgia o quanto antes."

Ele era convicente em suas mentiras, diz Marcela. Os encontros eram sempre durante a semana porque ele dizia "muito ocupado", atendia muitas ligações. "Era até um pouco arrogante com quem estava do outro lado. Dizia que queriam opiniões sobre diagnósticos." Se mostrava curioso com a vida da vítima, perguntava sobre família, futuro e desejos profissionais. "Fazia muitas perguntas, parecia entrevista de emprego, queria me conhecer bastante."

O golpe

A partir daí, iniciou uma série de chantagens emocionais e mentiras. Uma pessoa se passando por médico neurologista pessoal de Selister A chamou no WhatsApp e falou sobre o problema de saúde dele, um coágulo no cérebro que exigia uma cirurgia urgente. "A foto era de um profissional bem conhecido de Porto Alegre, não pensei se tratar de uma mentira. Tive empatia pela situação que ele enfrentava", diz.

O homem dizia que estava processando a Marinha por tudo que vivera na instituição, mas que estava sem dinheiro para cuidar da sua saúde. Devido a esse contexto, precisaria de dinheiro para pagar o valor integral do procedimento. "O profissional me disse, então, que sem os custos dele, pelo tempo que acompanhava o paciente, era preciso R$ 90 mil".

"Foi quando ele veio para me ver. Disse que tinha R$ 60 mil na conta e que faria um empréstimo no banco para o restante. Na expressão dele tinha muito desespero, porque se ele não fizesse o procedimento logo, poderia ocorrer algo pior", lembra a vítima.

Enquanto isso, enviava fotos do nariz com sangue e dizia que, a cada dia, piorava. "Ele disse que não conseguiu o valor restante na agência bancária. Então, transferi R$ 8 mil. Além disso, também paguei o suposto estagiário dele, já que enfrentava dificuldades financeiras."

A mulher fala que ele chegou a enviar o documento falsificado com o símbolo do TJ-RS informando que ele teria R$ 140 mil para receber, mas notou que o texto mencionava magistrados federais. Desconfiados do relacionamento e dos pedidos de empréstimo, os familiares a alertaram, mas ela não acreditou que poderia ser um golpe.

"No final, ele começou a pedir mais dinheiro emprestado, cada hora para alguma coisa. Mas eu não tinha mais recurso financeiro —havia feito até empréstimo no banco. Foi quando ele terminou o namoro."

"Não aceite relações tóxicas"

A vítima conta que, hoje, se dá conta de ter sofrido pressão psicológica para ceder aos pedidos de empréstimo. "A gente entra no mundo deles e vive por eles, devido a habilidade da manipulação. Mesmo quando as pessoas me falavam que a história estava estranha, para querer me ajudar mesmo, eu não acreditava". O relacionamento tóxico deixou marcas. "Nunca foi algo saudável, mas ele me conquistou e, depois de um tempo, me colocava para baixo. Eu tentava entender que ele não estava bem."

Desde que procurou a polícia, conseguiu conversar com outras pessoas que também caíram na fala convincente do estelionatário. Por medo, muitas desistiram de procurar a Justiça. "Todas que o cobraram, ele amedrontou, conseguiu silenciar. A gente não escolhe cair em golpe. É vergonhoso quando nos damos conta. Os comentários das pessoas também são ácidos, pensam que a mulher é burra."

Marcela sabe que a chance de reaver o valor emprestado ao ex é pequena. Mas, ainda assim, quer justiça. "Pensei comigo: vou fazer boletim de ocorrência, vou para a mídia, eu quero parar ele. Sempre que encontro uma pessoa que viveu o mesmo que eu, exponho a situação para que a gente possa se ajudar."


O que diz a polícia

O titular da Delegacia de Polícia de Farroupilha, delegado Éderson Bilhan, à frente do caso, confirmou que Guilherme Selister foi denunciado e indiciado pelo crime de estelionato, previsto no artigo 171 do Código Penal. A pena prevista é de um a cinco anos de prisão.

Bilhan não descarta que haja outras vítimas do estelionatário e orienta quem sofreu algum tipo de perda ou envolvimento com o homem a procurar a polícia.

Sempre que envolve o campo sentimental, o delegado pondera que o caso se torna mais difícil. "Há uma confiança natural nesse tipo de situação. A orientação é que qualquer relacionamento em que haja pedidos de empréstimo ligue o sinal de alerta."

Ele também explica que, como o golpista ganha a confiança da vítima, vai pedindo dinheiro aos poucos. "A pessoa precisa desconfiar caso haja solicitação, já no início, de dinheiro para custear suas contas, pagar dívidas, quitar empréstimos. É preciso ficar em alerta porque pode ser um golpe."


O que diz a defesa

Procurado por Universa, o advogado de Selister, Antônio Arbugeri, diz que o cliente "sempre esteve à disposição da Polícia Civil e da Justiça para esclarecer o ocorrido e que irá comprovar sua inocência".

Em relação às acusações, o advogado salienta que os "fatos a ele imputados são descabidos e sem comprovação e que ele não recebeu, até o presente momento, qualquer notificação judicial para dar sua versão dos fatos." O inquérito foi concluído no dia 24 de janeiro e remetido ao Ministério Público, que ainda analisa o caso.

O que é estelionato amoroso?

O golpe relatado por Marcela é considerado, no Brasil, estelionato amoroso, ou sentimental. Não está presente no Código Penal, onde consta apenas o crime de estelionato, quando a pessoa tenta obter uma vantagem sobre a outra por meio de fraude, de mentira e induzindo o outro a erro. Mas já faz parte da jurisprudência brasileira. Em 2015, em uma decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a vítima alegava ter contraído uma dívida de R$ 101,5 mil para ajudar o companheiro.

"Embora a aceitação de ajuda financeira não possa ser considerada conduta ilícita, o abuso desse direito, mediante o desrespeito dos deveres que decorrem da boa-fé, traduz-se em ilicitude, emergindo daí o dever de indenizar", afirmou o juiz Luciano dos Santos Mendes na sentença.

Como denunciar

A orientação é de que a mulher que possa estar sendo vítima de estelionato sentimental vá a uma delegacia registrar um boletim de ocorrência por estelionato, com o máximo de informações em relação ao agressor que possuir.

Depois, ela deve reunir todos os documentos que possui como prova: mensagens de WhatsApp, e-mail, boletos de pagamento, comprovantes de transferência, de extrato do cartão de crédito. Com isso em mãos, a sugestão é procurar um advogado ou a Defensoria Pública, para que se abra um processo judicial adequado ao caso e para que a mulher possa ser ressarcida.

*O nome foi alterado a pedido da entrevistada.