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'Ouvi que era frescura', diz mulher diagnosticada com endometriose tardia

Tathiane Fátima Bastos da Cruz, 38 anos, teve diagnóstico tardio para endometriose - Arquivo pessoal
Tathiane Fátima Bastos da Cruz, 38 anos, teve diagnóstico tardio para endometriose Imagem: Arquivo pessoal

Tainá Goulart

Colaboração para Universa, em São Paulo

03/04/2022 04h00

As jornadas da enfermeira Tathiane Fátima Bastos da Cruz, de 38 anos, e da comerciante Ivi Piovani, 46, com a endometriose são parecidas. O caminho dessa doença, que atinge cerca de 10% das mulheres em idade reprodutiva no mundo, é repleto de desinformação, sem contar as dores e outros prejuízos físicos e mentais.

"Desde que menstruei, aos 13 anos, sempre tive cólicas muito fortes que não me deixavam ir à escola. Toda vez que me consultava com um ginecologista, ouvia a mesma história: a de que era normal ter cólica e que remédios para a dor resolveriam. Cheguei a ouvir que era frescura", relembra Tathiane.

Aos 13, Ivi também menstruou e, no caso dela, além das cólicas, havia um fluxo intenso na menstruação. "Procurei médicos de diferentes especialidades para entender o que acontecia comigo, mas, com o tempo, foi piorando e continuei sem informação", pontua ela.

Para Maurício Abrão, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, e presidente da Associação Americana de Laparoscopia Ginecológica (AAGL), a desinformação é um dos fatores que mais atrapalham a mulher na hora de explicar os sintomas ao ginecologista. Ele pontua que há, também, a falta de profissionais qualificados.

"São dois pontos que interferem no diagnóstico preciso e na indicação do tratamento mais adequado, para devolver qualidade de vida da portadora da endometriose. Por isso, costumo reforçar que sentir dor não é normal", diz o ginecologista sobre a doença, que passou a ser considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) um problema de saúde pública. Em 2019, cerca de 7 milhões de brasileiras foram afetadas pelo problema, sendo que 11.790 precisaram de internação.

A doença, que tem o nome com origem na palavra endométrio, o tecido que reveste a parede interna do útero, ainda parece ser um tanto desconhecida para a grande maioria das mulheres. Tathi e Ivi passaram a juventude com cólicas incapacitantes, sem nenhuma menção à endometriose. Só perto dos 30 anos que elas ouviram falar desse nome, vindo da boca de um médico.

Doença pode causar dores severas

"A endometriose, que é uma doença inflamatória, acontece quando essas células do endométrio não saem do corpo da mulher e acabam parando em lugares em que não deveriam parar, como a região pélvica, composta por ovários, trompas, bexiga e intestino, por exemplo", pontua Maurício.

Como as células não pararam seu ciclo de crescimento, ou seja, continuam "descamando" como se estivessem no útero, provocam as famosas inflamações, aderências e até tumores císticos e sólidos, também conhecidos como fibróticos. Nos casos mais graves, essas aderências podem fazer com que os órgãos se juntem, perdendo suas respectivas mobilidades naturais, causando compressão e dores severas.

Quando falamos do impacto da endometriose na saúde mental, muitas vezes deixamos de pensar nos adolescentes. É o que aponta o cirurgião pélvico e diretor técnico do Núcleo Santista de Endometriose, Dr. Guilherme Karam. "Como se trata de uma faixa etária com inúmeras mudanças e questionamentos, muitas pessoas podem pensar que é frescura. As adolescentes, geralmente, relatam dores físicas, diminuição da saúde geral e da vitalidade, dificuldade de socialização e de lidar com as alterações emocionais", explica ele, enfatizando a conversa sobre o tema desde a primeira menstruação, para evitar que as mulheres enfrentem muitos sofrimentos.

Algo que Tathi conhece muito bem. "Aos 26 anos, encontrei uma médica que me deu o primeiro conceito do que era a endometriose. Na época, estava tentando engravidar havia um ano e passei a pesquisar se uma coisa tinha relação com a outra. Com essa ginecologista, fiz a primeira videolaparoscopia (principal cirurgia para tratar a doença), e recebi o diagnóstico da doença", relembra a enfermeira.

Vício em opioides

A partir de então, Tathi utilizou várias medicações para a manutenção do tratamento, mas nada funcionou. Uma segunda cirurgia apontou lesões mais extensas. "Depois dessa segunda videolaparoscopia, as dores aumentaram e comecei a tomar opioides. Minha vida virou de cabeça para baixo", relata ela, sobre os medicamentos com efeitos analgésicos e sedativos.

"Fiquei viciada em medicações para dor, elas viraram minha válvula de escape. Tinha receitas de morfina e por muito tempo fiquei indo aos consultórios só para ser medicada. Entrei em uma espiral de problemas, pois comecei a ter questões no trabalho, financeiras e psicológicas", afirma Tathi, que passou, no total, por nove cirurgias.

Segundo Guilherme, por ser uma doença crônica, a endometriose costuma receber tratamento contínuo no decorrer da vida, por isso, é preciso aumentar a disseminação de informações corretas sobre todas as esferas desse problema.

Um dos principais objetivos do tratamento é devolver a qualidade de vida da paciente. Por isso, é muito importante que o diagnóstico seja obtido de maneira precoce, pois reduz o impacto negativo da doença e aumenta as chances de evitar que a lesão se expanda.

Dr. Guilherme Karam, cirurgião pélvico e diretor técnico do Núcleo Santista de Endometriose

Ivi - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A comerciante Ivi Piovani, 46: 'Procurei médicos de diferentes especialidades para entender o que acontecia comigo'
Imagem: Arquivo pessoal

Um dos grandes impactos mentais que Ivi sofreu foi a impossibilidade de engravidar. Depois de se submeter à primeira videolaparoscopia, aos 30, a comerciante recorda que procurou auxílio para engravidar, mas sem sucesso. "Foi uma frustração enorme saber que não poderia ter filhos. Uma coisa é você não querer ter, outra é saber que não pode. Optei por não ter filhos naquele momento porque não queria carregar duas frustrações. A endometriose abalou muito o meu emocional", conta Ivi.

Sem cura, mas com tratamento integrativo

Como a endometriose não tem cura, o especialista reitera a importância de se manter alerta aos sintomas, entre eles a cólica incapacitante, dor no ato sexual, dor na região pélvica, barriga inchada, e até depressão. Além disso, quando há o diagnóstico, é preciso consultar especialistas para que possa ser prescrito o tratamento mais adequado em cada caso.

O tratamento clínico integrativo, um dos mais utilizados atualmente, começa com a visão do médico sobre a qualidade de vida da paciente. "O médico que trata endometriose não pode olhar para um órgão, mas para o ser humano como um todo", diz Mauricio. Atividade física auxilia na redução do processo inflamatório e até no fluxo menstrual; além disso, é importante evitar alimentos que colaboram com a inflamação, como derivados do leite, glúten e açúcar. O cuidado com o sono e a saúde mental complementam os tratamentos medicamentosos e cirúrgicos.

"Hoje faço pilates, mantenho uma alimentação regrada, procuro dormir pelo menos oito horas e faço terapia. Assim, convivo melhor com a doença. Tenho muitos desafios com as dores, especialmente com as sequelas de um diagnóstico tardio, mas esse conjunto de ações me dá esperança", finaliza Tathi.