Topo

Mulher com HIV tem diagnóstico exposto e processa município de São Paulo

Por medo do preconceito, Fernanda* preferia não revelar sua condição - Getty Images/iStockphoto
Por medo do preconceito, Fernanda* preferia não revelar sua condição Imagem: Getty Images/iStockphoto

Gabryella Garcia

Colaboração para Universa, em São Paulo

14/03/2022 04h00

Fernanda*, 42, é uma mulher com HIV, que descobriu sua condição no ano de 2014. Começou um tratamento em 2015 e, desde então, levava uma vida normal. Ela preferiu manter consigo a informação sobre ser portadora do vírus porque temia o preconceito das outras pessoas o que, infelizmente, iria trazer consequências profissionais e pessoais para sua vida. Revelou sua condição apenas para a mãe.

Até que, em março de 2020, funcionários do Centro de Referência de DST/AIDS Santo Amaro, bairro da zona sul de São Paulo, expuseram e laudos médicos dela a outras pessoas sem sua autorização. "Perdi a vontade de viver com tanta exposição. Hoje, sinto que não sou a mesma pessoa de antes. Senti um distanciamento de quem estava à minha volta e, às vezes, me sinto até perseguida. Saía de casa e via que as pessoas estavam falando de mim", afirma.

Passados quase dois anos do ocorrido, no dia 4 de fevereiro de 2022, Fernanda* resolveu entrar com uma ação contra o município de São Paulo, que é o responsável pelo gerenciamento do centro de saúde, pedindo uma indenização por danos morais. "Desde o início procurei apoio jurídico porque sabia dos meus direitos, mas só agora tive coragem de revisitar toda a história porque tudo isso me magoa e mexe muito comigo. Tive um abalo psicológico forte, isso tudo me causava muito transtorno e brigas familiares".

O preconceito, conta, fez com que ela mesma visse o diagnóstico como um atestado de que iria morrer. "Não tinha muito conhecimento", relata. Mas, após o susto inicial e com o auxílio de remédios e de acompanhamento médico, Fernanda* percebeu que poderia ter a mesma vida de sempre. O único problema era o medo do julgamento alheio.

Parceiro na época recebeu mensagem anônima sobre mim

"Em 2020, eu tinha um relacionamento com um policial militar. Um dia, ele me ligou e contou que havia recebido mensagem de um número desconhecido falando que eu tinha HIV. As mensagens diziam para ele tomar cuidado porque eu era 'aidética' e estava 'passando AIDS' para todo mundo foi horrível", relembra. "Na hora, minha perna tremeu, e fiquei tentando entender o que estava acontecendo".

Fernanda* conta que nunca teve uma boa relação com sua filha, hoje com 23 anos. Ela relata que alguns meses antes de toda a exposição, ela soube da condição mãe. "No impulso, acabei falando que tinha HIV quando estava tomando cerveja com algumas pessoas em casa e disse que, se não quisessem aceitar, o problema era delas, mas minha filha acabou ouvindo. Ela acabou guardando essa informação para usar contra mim".

Após uma discussão com a filha, ela, em um momento de raiva, mandou mensagens para uma amiga revelando a história da mãe "Essa amiga pediu para minha filha provar que eu era soropositiva, foi aí que tiveram a ideia de buscar meu prontuário médico no centro de saúde."

Centro de saúde expôs prontuário sem autorização

Fernanda conta que, por frequentar o centro de saúde, as pessoas conheciam sua filha, que a acompanhava. Mas nunca imaginou que pudesse expor seu problema à garota. "Até por uma questão de sigilo médico não poderiam entregar nada para ela sem a minha autorização. Ainda era início da pandemia, e ela chegou dizendo que eu estava internada com covid, o médico precisava saber quais eram os remédios que eu tomava. Aí ligou para essa amiga que fingiu ser eu e pediu para liberar o prontuário. Nesse momento minha filha tirou fotos do prontuário e minha vida virou um verdadeiro inferno, é algo que me dói e vou carregar para sempre."

Mensagens com o prontuário da mãe começaram disparar mensagens para amigos de Fernanda* expondo toda a situação que até então era um segredo partilhado apenas entre a vítima e sua mãe.

Após o desespero, Fernanda foi até o centro de saúde questionar os funcionários. Ela gravou toda a conversa, e eles confessam ter fornecido seu prontuário para terceiros, mesmo sem autorização, mas afirmavam que não tinham a intenção de lhe expor. "Cheguei lá e eles confessaram, mas tentavam justificar o injustificável. Isso não pode acontecer de jeito nenhum, a lei garante o sigilo médico. Eles poderiam fornecer se eu estivesse junto ou autorizasse por escrito, mas outra pessoa só poderia conseguir o prontuário com mandado judicial. Toda essa situação me deixou em um estado de choque que tive que tomar remédios para dormir e, até hoje, tenho gatilhos de ansiedade".

"O preconceito com pessoas soropositivas ainda é muito grande, infelizmente. É como se eu fosse uma escória da humanidade. Além disso, sou uma mulher negra, então há o peso dos preconceitos."

Amparada pelo artigo 89 do Código de Ética Médica, parte de uma Resolução do CRM (Conselho Federal de Medicina) de 2009, que proíbe o fornecimento de prontuários médicos a terceiros, Fernanda* procurou a advogada criminalista Carolina Fichmann, com ampla atuação na área do direito das mulheres. Em conversa com Universa, ela explicou o porquê de a vítima ter direito a uma indenização.

"São duas questões relevantes. A primeira diz respeito ao sigilo médico. A segunda é sobre a responsabilidade civil do município. O que aconteceu com a Fernanda* foi inescrupuloso e surreal. A funcionária do centro de saúde deveria ter agido com o maior dever de cuidado, mas esse dever não existiu. Eles não podem entregar o prontuário e, mesmo sem intenção de dolo, houve uma responsabilidade objetiva. É um direito da vítima como cidadã ser indenizada por tudo o que ela sofreu".

Fichmann ainda afirmou que, além da ação contra o município, irá entrar com um pedido para que o Ministério Público intervenha e investigue as ações da filha da vítima e de sua amiga. "Tiveram uma atitude que não pode ser tolerada de forma alguma e devem ser investigadas e punidas pelo rigor da lei".

Universa entrou em contato com a Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo solicitando um posicionamento sobre o vazamento do prontuário médico a terceiros, questionando quais medidas podem ser tomadas e qual tipo de orientação é passada para os funcionários das unidades de saúde. Em nota, a pasta respondeu apenas que "não foi notificada do caso citado pela reportagem".

*O nome foi alterado a pedido da entrevistada