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Diretora de presídio no RS: 'Me perguntam por que gosto tanto de preso'

Ana Maria Hermes, diretora de presídio em Porto Alegre - Daniel Marenco/Folhapress
Ana Maria Hermes, diretora de presídio em Porto Alegre Imagem: Daniel Marenco/Folhapress

Franceli Stefani

Colaboração para Universa, em Porto Alegre

10/03/2022 04h00

Como diretora da Cadeia Pública de Porto Alegre, a maior do Rio Grande do Sul, Ana Maria Hermes, 47, lida diariamente com 3.000 presos, a maioria deles membros de facções criminosas do estado. O presídio já foi considerado o pior do país até que, em 2013, a OEA (Organização dos Estados Americanos) exigiu do governo brasileiro que resolvesse o caos carcerário instaurado na unidade.

Hermes diz ser respeitada e nunca ter sofrido ameaças por parte dos detentos, com quem afirma manter um bom diálogo. Em sua gestão, a qual assumiu em meados de 2021, tem como foco implementar iniciativas de profissionalização e ressocialização. Bandido bom é bandido morto? Não para ela.

"Algumas pessoas questionam: 'Você gosta tanto assim de preso?'. Não é isso. A pessoa precisa ter oportunidade de ser diferente do que era antes do cárcere e fazer diferença após sair daqui. Penso que nós, enquanto gestores de casas prisionais, não podemos perder de vista o tratamento penal correto, que não é apenas pelo preso, mas por toda a sociedade", diz, em conversa com Universa.

Hermes é a primeira mulher a comandar a maior penitenciária do estado em 56 anos, desde que foi fundada. Diz, porém, que relutou em destacar esse marco histórico, por acreditar que seu gênero não deveria ser o foco. Foi a filha de 14 anos — ela é mãe de outro rapaz de 24 — que lhe abriu os olhos. "Comentei em casa que estava me sentindo um pouco desconfortável com essa situação. Manoela me disse: 'Mãe, imagina quantas mulheres pensam que não podem estar em uma função dessas? E você, estando onde está, mostra que é possível estar em qualquer lugar'. Vi que ela tinha razão."

Leia trechos da entrevista.

"Perguntavam que homem chefiava as operações. Era eu"

"Não é incomum mulheres liderarem uma ofensiva policial. Mas há um estereótipo cultural, que vem desde os grandes exércitos, os grandes guerreiros, os heróis, os comandantes. Eram todos homens.

Já vivi situações em que comandava uma operação policial nas ruas do Rio de Janeiro, durante os Jogos Olímpicos de 2016, e as pessoas vinham procurar o chefe da operação. Muitas vezes passavam reto por mim e questionavam um homem. Normalmente avantajado fisicamente.

O estereótipo da polícia é, ainda, de quem é mais forte, não de quem é melhor treinado e tem mais técnica. E sabemos que, hoje, nós podemos e devemos agregar muito mais técnica do que força no trabalho policial.

Fiz parte da Força Nacional e me chamou atenção uma foto de treinamento: eu, a única mulher, ao lado de um grande grupo de homens no terreno (imagem abaixo).

Ana Maria Hermes, última à direita, durante treinamento da polícia: única mulher em grupo masculino - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Ana Maria Hermes, última à direita, durante treinamento da polícia: única mulher em grupo masculino
Imagem: Arquivo pessoal

Já sofri machismo tanto dentro como fora da instituição, mas não foi algo voluntário, e sim decorrente do senso comum. Porém, nunca me permiti pensar nisso, sentar na calçada e chorar. Quando me sentia testada, era quando mais me entregava para atingir meu objetivo ou cumprir uma missão."

"Troca de absorvente durante treinamento gerou mudança na instituição"

"Eu me formei no Curso Superior da Polícia Militar em 2007. Em um dos treinamentos de campo que nos fazia lidar com exaustão física e psicológica, estava no meu ciclo menstrual.

Precisei trocar o absorvente, e os oficiais, todos homens e tendo a primeira experiência com mulheres nas turmas, não perceberam que poderia haver alguma necessidade específica. Tentava falar com certo constrangimento, mas me pediam para continuar em forma, pois ninguém havia sido liberado.

Até que, em determinado momento, me aproximei e relatei o que se passava com todas as letras. Fui liberada para ir ao banheiro. A partir de então, a instituição se atualizou e passou a colocar mulheres nas coordenações dos treinamentos dos alunos.

Essa é a prova de que temos as mesmas condições, mas somos diferentes."


"Mulheres olham para as pessoas e vêem uma história inteira"

No geral, vejo que os homens são mais práticos, e nós, mulheres, temos um olhar diferente para as pessoas. A gente enxerga detalhes para elucidar uma história inteira. Nós mulheres conseguimos dar um pouco mais de espaço para aquilo que está no interior de cada um. Isso é importante dentro do sistema prisional.

Das pessoas que chegam aqui, muitos trazem inquietações que eles próprios desconhecem. Jamais relativizamos o motivo de estarem aqui, nosso trabalho é manter os indivíduos encarcerados com segurança. Mas temos que conceder, dentro da legalidade, o tratamento penal adequado. Não apenas porque queremos ou porque é uma ideologia minha, mas porque está previsto em lei e é direito deles.


"Meu grande sonho é oferecer uma profissão aos detentos"

"Por meio dos cursos de profissionalização podemos trabalhar a autoestima e o desenvolvimento das potencialidades. Ano passado conseguimos formar, sempre em turmas pequenas por questões de segurança, turmas de auxiliares veterinários, de polimento e espelhamento de veículos e de instalação de placas solares.

Estamos trabalhando com apoio de organizações e instituições privadas para nos auxiliar. Ainda é pouco, mas estamos fazendo. Mesmo que fosse uma só trajetória que tivéssemos a oportunidade de mudar, valeria a pena.

Em março iniciaremos os cursos de barbearia e auxiliar de cozinha. No próximo trimestre vamos tentar outras oportunidades profissionalizantes. Meu grande sonho é oferecer uma profissão aos internos.


"Falta de oportunidade pode levar a cometer crimes"

A falta de oportunidade pode levar a cometer crimes, temos exemplos aqui, apesar de não ser a maioria. Um grande número de detentos é de filiados a grupos criminosos, chamados faccionados. Para mim, como diretora, não tem nenhuma diferença entre os que pertencem a esse ou aquele grupo daqueles que não pertencem.

As pessoas presas chegam aqui se declarando de uma ou outra organização criminosa. Por quê? Porque, via de regra, os crimes que alimentam o sistema prisional não são os que se comete sozinhos, mas os que dependem de uma rede. Para que essa rede exista, eles precisam se filiar antes de ingressar aqui.

Não tive nenhum dissabor, nenhuma ameaça ou enfrentamento. Já tinha um relação com os detentos e dialogava com eles antes de ser diretora, pois fui subdiretora na parte operacional. Sempre que foi preciso, nós conversamos no mesmo nível.

Mas há os que cometem delitos por estarem à margem do sistema e, de alguma forma, são levados a suprir suas necessidades por meio do crime.

Em 2018, um preso deu um depoimento na Feira do Livro de Porto Alegre, depois de ficar em terceiro lugar em um concurso de redação nacional, e nos chamou atenção. Como o texto saiu nesse livro, editado com contos advindos do sistema prisional. O rapaz era órfão, foi criado na rua e começou a cometer pequenos delitos para comprar comida e usar entorpecentes. Diz que conheceu a diferença entre o 'sim' e o 'não', limites, o que pode ou não ser feito, na Cadeia Pública de Porto Alegre.

Qualquer especialista jurídico que analisa o nosso conjunto legal vai ver que o que fazemos é muito avançado. Mas isso não depende do nosso entendimento. A pessoa presa tem a garantia de todos os seus direitos legais, isso transcende qualquer avaliação pessoal ou do pensamento mantido por parte da sociedade. Me pauto pela Lei de Execução Penal. É isso que importa.