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'Internei minha mãe bipolar algumas vezes. A fotografia me aproximou dela'

A fotógrafa Isabella Lanave - Arquivo Pessoal
A fotógrafa Isabella Lanave Imagem: Arquivo Pessoal

Isabella Lanave, em depoimento a Luciana Franca

Colaboração para Universa

03/03/2022 04h00Atualizada em 03/03/2022 15h42

"Eu tinha 10 anos quando meu irmão nasceu e minha mãe teve depressão pós-parto. Logo depois, ela foi diagnosticada com transtorno bipolar e passou a ser internada. Eu era criança, não tinha ideia do que isso significava, mas as pessoas me diziam: 'Sua mãe precisa ir para um hospital psiquiátrico e quando ela voltar, vai ficar bem'.

Só que ela não voltava bem. Saía dopada, demorava a se adaptar à casa, ficava ruim novamente.

Nas internações mais longas, de dois meses, como meu padrasto trabalhava o dia inteiro, eu morava com uma prima em Piçarras (SC), para poder ir à escola. Meu irmão, ainda bebê, ficava com um tio em Curitiba (PR), cidade onde nasci.

A fotógrafa Isabella Lanave e sua mãe, Fátima - Isabella Lanave - Isabella Lanave
A fotógrafa Isabella Lanave e sua mãe, Fátima
Imagem: Isabella Lanave

Foi na faculdade de Jornalismo que me apaixonei pela fotografia. Até então, tinha crescido vendo fotos da família que minha avó guardava em caixas de sapato. No primeiro ano, em 2012, comprei uma câmera com o dinheiro de um estágio, comecei a registrar minha família e descobri a fotografia como uma forma de expressão.

Nessa época, quando minha mãe saia de uma internação, eu queria ouvi-la, filmá-la contando como tinha sido, fotografá-la de algum jeito. Isso não acontecia antes porque a maneira que eu conseguia lidar era me afastando até ela ficar boa, ou melhor, o que eu entendia como boa.

A fotografia era quase uma desculpa para eu ir me aproximando. No começo, eu ficava olhando com a minha câmera, sem interferir. Com o tempo, ela passou a fazer até mais do que eu propunha, coisas que ela criava, mas isso foi um processo. Dei a esse projeto o título de 'Fátima', nome da minha mãe.

Ela passou por algumas situações de surtos, de crise, e eu fotografava esses momentos. Com 20 anos, assinei os papéis da internação de minha mãe pela primeira vez. Cheguei a fazer um curta-metragem em que uma mulher de meia idade estava perdida na vida e se jogava no mar, e era minha própria mãe que atuava no filme.

Percebi, então, que o que estava produzindo, mesmo que ainda não soubesse, já era um caminho para tentar entender quem eu era, o que minha mãe sentia, o que era isso que acontecia na nossa família e não falávamos sobre.

Quando tive consciência de algumas coisas, e ter começado a terapia me ajudou, passei a interferir mais, a ler cartas que ela me escreveu quando eu era mais nova, textos que ela produzia quando estava internada.

O projeto "Fátima" é um trabalho de vida porque talvez nunca acabe. Ele me abriu caminhos na fotografia e na minha profissão, que hoje está indo para além da minha mãe.

Fátima, mãe de Isabella, em foto para projeto homônimo - Isabella Lanave - Isabella Lanave
Fátima, mãe de Isabella, em foto para projeto homônimo
Imagem: Isabella Lanave

No fim de 2017, eu estava num momento muito intenso com ela, tinha passado por internações recentes, eu a tinha fotografado muito e pensei: quero começar um novo trabalho sobre saúde mental, mas que fale com outras pessoas, quero conhecer quem passou por vivências parecidas.

Tive medo na época porque as pessoas me falavam para não ser igual à minha mãe, que essas doenças são genéticas? Eu queria entender. Fui atrás de saber o que é essa loucura e pensei no projeto de um livro com começo, meio e fim porque 'Fátima' é infinito, não consigo pensar em um fim para ele, quero também fazer um filme sobre ela.

Juliana e Taís Sanson foram retratadas no livro "Leve a Sério o Que Ela Diz" - Isabella Lanave - Isabella Lanave
Juliana e Taís Sanson foram retratadas no livro "Leve a Sério o Que Ela Diz"
Imagem: Isabella Lanave

O nome do livro surgiu em uma conversa com uma amiga, eu lembrando das pessoas me dizendo para não levar a sério o que minha mãe dizia 'porque ela estava tomando remédio, porque era exagerada, porque era louca'. Sempre tinha um adjetivo para a minha mãe. Então, o livro começa pelo nome: "Leve a Sério o que Ela Diz" [da Lovely House Editora], que será lançado na segunda semana de março.

Por 'Leve a Sério o que Ela Diz', me refiro ao que chamamos de loucura e as pessoas que por ela são atravessadas, como é importante levar a sério esses sentimentos, independente da forma que isso se apresente. Levei dois anos para encontrar dez personagens que passaram por essas situações.

A ideia era conhecer a história de cada um, fotografá-los no lugar onde escolhessem. Uma delas decidiu voltar ao hospital onde foi internada, o prédio foi demolido, mas o terreno ainda existe; outro menino escolheu ir para uma ponte perto de onde morava quando era criança e pensava em se jogar de lá.

Lua e Ana D´Ávila, personagens do livro da fotógrafa - Isabella Lanave - Isabella Lanave
Lua e Ana D´Ávila, personagens do livro da fotógrafa
Imagem: Isabella Lanave

Quando comecei este trabalho, tinha o desejo de que as pessoas escrevessem cartas, não tinha pretensão de contar a história de ninguém, a ideia era que elas mesmas contassem o que desejassem sobre suas histórias, além da imagem. Teve quem escreveu uma carta para si mesmo, quem escreveu para quem vai ler o livro, um mandou o poema que fez enquanto estava internado, outro fez um desenho?

No início, estava focada em pensar nos diagnósticos e no que essas pessoas passaram em hospitais psiquiátricos, mas o livro mudou porque não era só sobre saúde mental, que é limitador, a sociedade coloca as pessoas em caixas, em estigmas.

Foto do livro "Leve a Sério o Que Ela Diz"  - Isabella Lanave - Isabella Lanave
Foto do livro "Leve a Sério o Que Ela Diz"
Imagem: Isabella Lanave

O livro é sobre vida, transformação, então fui encontrando na natureza outras imagens que ajudasem a contar essas histórias e trazer sensações. 'Leve a Sério o que Ela Diz' é um livro que foi pensado para ser lido da esquerda para a direita, como um convite para mudar um pouco o ângulo quando pensamos sobre saúde e loucura.

Isabella Lanave, 27 anos, artista visual e autora do projeto Fátima, que retrata a relação com a mãe neurodiversa, e do livro "Leve a Sério o que Ela Diz"(Lovely House Editora) . Em 2017, estava entre as 34 fotógrafas do mundo indicadas pela revista americana "Time"