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'Revolução começa na educação', diz 1ª diretora trans da rede pública de SP

Paula Beatriz de Souza Cruz, 51, é responsável pela administração da Escola Estadual Santa Rosa de Lima, no Capão Redondo, na Zona Sul de São Paulo.  - arquivo pessoal
Paula Beatriz de Souza Cruz, 51, é responsável pela administração da Escola Estadual Santa Rosa de Lima, no Capão Redondo, na Zona Sul de São Paulo. Imagem: arquivo pessoal

Mariana Toledo

Colaboração para Universa

22/02/2022 04h00

Paula Beatriz de Souza Cruz, 51, é responsável pela administração da Escola Estadual Santa Rosa de Lima, no Capão Redondo, na Zona Sul de São Paulo. E mais: ela é a primeira diretora trans de uma escola pública da cidade, cargo que ocupa desde 2013.

Nascida na capital, ela cresceu em uma família bem humilde - eram seis irmãos e a mãe, que se separou do pai quando as crianças eram pequenas e logo se afastou da criação dos filhos. Paula conta que desde pequena já sabia que trabalharia com educação: "Eu não gostava de brincadeiras como carrinho, jogar futebol. Pra mim, a verdadeira brincadeira era frequentar a escola. Não sabia exatamente o que queria fazer da vida, mas sentia que seria dentro do ambiente escolar. Até hoje é minha paixão. Escola é vida, é movimento", disse em um bate-papo exclusivo com Universa.

Bullying mas também aceitação na escola pública

Paula estudou na escola pública até a quinta série. Sempre foi boa aluna e fazia questão de ajudar os professores. "Naquela época, não tinha questões sobre identidade de gênero. Quer dizer, eu sabia que não era um menino, como me diziam, mas ainda não parava para pensar o que isso significava".

Quando tinha por volta dos 12 anos, começou a ter problemas com discriminação e preconceito. "Uma vez, escreveram 'bicha' nas minhas costas. Fui para a lousa fazer uma atividade e só ouvia as risadas. Não entendi o que estava acontecendo. Então, uma colega saiu da sala e foi procurar a minha mãe, que trabalhava como servente na escola. Ela contou tudo e, na hora, minha mãe apareceu na sala. Deu o maior sermão e uma bronca no professor, que não tinha tomado nenhuma providência diante da situação".

A partir daí, as provocações começaram a ser constantes. Paula ouvia inclusive dos professores que era "daquele jeito" por culpa da educação que a mãe dava para ela. "Fui levada ao psicólogo, ao psiquiatra, ouvi que precisava tratar o meu 'homossexualismo', como chamavam na época. Comecei a tomar remédios, mas eles não me fizeram bem. Interferiram no meu rendimento escolar, na minha postura em casa. Tudo mudou. Até que um dia, minha mãe pegou todos os remédios e jogou no vaso sanitário. Lembro dela dizer: 'Se tiver que ser bicha, vai ser. Se tiver que ser travesti, vai ser'. Ela nem tinha compreensão do que aquelas palavras significavam de verdade. Eu nunca mais tomei remédio. Hoje, minha mãe tem 92 anos e ainda somos grandes amigas".

Mais tarde, em uma escola nova, Paula já tinha o costume de passar mais tempo com as meninas do que com os meninos. A coordenação, já entendendo a situação, chamou a mãe dela para conversar. "Eu não participei do papo, mas tempos depois minha mãe me contou que os professores disseram a ela que independente do que eu decidisse ser, ali dentro eu seria acolhida e não enfrentaria nenhum tipo de preconceito. Ela chorou muito. E foi isso mesmo que aconteceu: eu me dei muito bem naquela escola e até hoje tenho vínculo com os amigos que conheci lá".

Paula Beatriz é a primeira diretora trans de uma escola pública da cidade, cargo que ocupa desde 2013. - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Paula Beatriz é a primeira diretora trans de uma escola pública da capital paulista, cargo que ocupa desde 2013.
Imagem: arquivo pessoal

Um novo entendimento

Foi durante uma aula de Ciências sobre o aparelho reprodutor que Paula começou a se questionar de fato sobre quem era. "Fiquei bem confusa porque, pra mim, eu já era mulher. Mas meu corpo físico não era de mulher. Aquilo me despertou pra estudar, ir atrás de informações. Comecei um movimento interno. Até então, não sabia nada sobre transexualidade. Achava que era gay, não sei. Esses termos não eram muito falados. A partir daí, vivia na biblioteca da escola. Fui começar a entender melhor as coisas".

No Ensino Médio, Paula retornou à escola que estudou anteriormente - aquela onde sofreu preconceito dos colegas e dos professores. "Mas dessa vez foi diferente. Eu já estava preparada. Vinham os ataques e eu já respondia na hora. Reagia mesmo. Aí as pessoas começaram a se intimidar e pararam de me atacar. Eu ainda não usava o termo trans, mas sabia que era mulher e isso pra mim já bastava".

Na maioridade, Paula teve contato com travestis pela primeira vez, em uma boate. "Olha que loucura: eu tinha medo de travesti. Existia uma 'lenda urbana' de que elas andavam com gilete na boca. Mas conheci de perto e vi que não era nada disso. Comecei a frequentar shows de transformistas e, mais tarde, a me apresentar também. Aos finais de semana, a Paula saía de uma mala e, depois, voltava para dentro dela. Fiquei anos fazendo isso. Em paralelo, continuei estudando, fiz faculdade e comecei a lecionar na rede estadual e particular de ensino".

A primeira diretora trans da rede pública de SP

Já trabalhando como diretora de escola, Paula sentiu uma inquietação forte aos 35 anos, que afetou seu emocional, profissional, convívio social e familiar. Tudo isso porque ela ainda não era, de fato, a Paula. "Resolvi então falar para o meu médico que queria tomar hormônios, me tornar mais feminina. Lembro que ele respondeu: 'Então você resolveu ser quem você é. Que bom!' e me encaminhou para outros médicos que foram me ajudando nesse processo. E isso foi feito no Hospital do Servidor Público Estadual. Desde então tenho esse acompanhamento deles, com médicos de várias especialidades. Achei muito bom como eles me acolheram, outros médicos quiseram me conhecer para entender, compreender o processo da transexualidade. Na saúde essa ainda é uma questão forte para nós. Não são todos os médicos que estão preparados para nos atender".

Paula fez a cirurgia de transição e colocou prótese nos seios, além de continuar com os hormônios. Na escola, não encontrou nenhuma resistência. "Fui eu mesma que decidi me afastar temporariamente da direção e ir para a supervisão. Isso porque eu trabalhava com crianças de seis a dez anos. Não que elas não tenham que participar das coisas, mas criança tem que ter seu tempo para entender. E eu era muito próxima delas, me preocupei com como ficaria a cabeça delas diante daquela mudança". Depois de quatro anos na supervisão de ensino, Paula reassumiu a direção: era, então, a primeira diretora trans da rede pública de ensino de São Paulo.

"Não falo em transição, e sim que exteriorizei a Paula. Ela sempre esteve aqui!"

Com a nova identidade, Paula se surpreendeu com a reação das pessoas. "Os outros professores, funcionários, pais dos alunos: todos entenderam, não houve nenhuma questão. Ninguém veio com 'Ué, mas ela não era fulano?'. Até perguntaram, mas pela curiosidade mesmo, e não pelo julgamento. Nenhum pai me confrontou, quis tirar a criança da escola. Nenhum funcionário se afastou. Essas pessoas foram verdadeiras aliadas para mim e fizeram desse processo extremamente natural. Fui felizarda. Sei que esse, infelizmente, não é o padrão para as pessoas trans. É exceção. Digo que fui abençoada por ter encontrado pessoas que me compreenderam tão bem".

Paula é diretora dessa escola até hoje. "Fiz tudo isso por mim. Porque eu precisava ter essa identidade reconhecida. Mas não falo em transição. Falo que exteriorizei a Paula. Porque já nasci Paula! Ela sempre esteve aqui, dentro de uma figura masculina. Só veio para fora". Paula acredita que todo esse apoio que recebeu se deu por conta desse convívio próximo com as pessoas. "Quando se convive, se tem outro entendimento. Eu mesma tinha essa visão errada, de medo de travesti. O convívio próximo te tira do estereótipo. Sempre temos o hábito de julgar antes de conhecer, sem dar a oportunidade do diálogo, e isso é muito ruim para nós".

Atuação na militância

A partir do momento em que Paula se torna a primeira diretora trans da rede pública de São Paulo, entende também seu papel como ativista. "É algo que a própria comunidade LGBTQIA+ faz, isto é, eles me tornaram uma ativista. Especialmente por conta de tudo que sofremos no ambiente escolar. Comecei a me envolver com isso a fim de ressignificar dores e sofrimentos, para que isso não se perpetue. Tenho feito essa caminhada principalmente por meio do diálogo. E vai além do reeducar a sociedade. Muitas trans e travestis relataram para mim que voltaram a estudar depois de conhecerem a minha história. Porque viram que elas não precisam ficar só naquele espaço que a sociedade muitas vezes impõe".

Para além do ativismo na comunidade LGBTQIA+, ela também se envolve com causas raciais. "Isso é muito vivo em mim e muito valoroso. É meu papel enquanto cidadã". Apesar de hoje ocupar um cargo de liderança, especialmente dentro do ambiente escolar, Paula ressalta que ainda falta muito a evoluir no sentido de termos mais espaços para trans e travestis. "Eu quero uma garantia de equidade de oportunidades para nós. O direito é de todes, e isso tem que estar muito claro".

Revolução pela educação

Ela acredita que essa transformação rumo a uma sociedade mais justa e igualitária começa na escola.

"Sou a favor de iniciar já na Educação Infantil uma desconstrução. Precisamos acabar com o 'isso é de menino, isso é de menina' em brincadeiras, cores, separação por filas ou na hora do recreio. Isso não pode mais estar presente na Educação Infantil. São crianças, criança tem que ser livre para brincar, vivenciar as coisas do jeito que ela quiser. Menino tem que brincar de boneca, sim, para mais tarde quebrar esse machismo de que ele tem que ser o provedor da casa.

E a menina, que não pode brincar de carrinho mas depois dos 18 pode tirar carta? Não tem nada a ver. Tem que parar com o 'não chora porque você é homem' na infância. Eles não são homens, são só crianças. Podem chorar o quanto quiserem".

É claro que não existe uma fórmula pronta, mas Paula acredita que um bom começo seja dar essa liberdade para as crianças e investir no diálogo com os pais. "Alguns professores têm medo, não sabem o que vão enfrentar. Mas é bom lembrar que tem pais que serão aliados e vão nos ajudar nesse caminho. Até mesmo porque o conceito de família mudou há muito tempo. Hoje, tenho alunos que são criados por dois pais, duas mães, pelos tios, pelos avós, que moram em orfanatos. Ainda faz sentido ter Dia dos Pais e Dia das Mães na escola? Não podemos mais. Tem que ser Dia da Família. Famílias são constituídas de diversidades muito grandes".

Ela conclui: "A revolução começa na Educação Infantil, continua no Ensino Fundamental e, futuramente, chega na sociedade. Crianças que passam por esse processo crescem com outra atitude, valorizando o respeito em primeiro lugar".