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'Sou filha de um pedreiro e de uma boia-fria. Ano que vem, me formo médica'

A estudante de medicina Isabella da Silva conta sua história - Arquivo pessoal
A estudante de medicina Isabella da Silva conta sua história Imagem: Arquivo pessoal

Isabella Maria da Silva em depoimento a Ed Rodrigues

Colaboração para Universa

20/02/2022 04h00

"Sou natural de Bom Sucesso, cidade ao sul de Minas Gerais. Desde 2014 moro em Divinópolis, no centro-oeste do estado. Na minha infância, sempre amei estudar, até tinha cogitado ser médica, mas só tive certeza que queria isso mesmo no ensino médio.

Meu nome é Isabella Maria da Silva, tenho 25 anos e estou no nono período de medicina na UFSJ (Universidade Federal São João del-Rei). Sou filha de um pedreiro e de uma boia-fria. Venho de uma família de cinco irmãos. Na minha casa, a gente nunca passou fome, mas já passamos vontade de muitas coisas. Durante cinco anos, antes de eu me mudar para Divinópolis, morávamos eu, meus pais, minha irmã, meu irmão e a família dele — cunhada e os três filhos.

Quando nasci, aconteceu um acidente. Durante o uso do fórceps [instrumento para facilitar a passagem da cabeça do bebê pelo canal vaginal], o médico lesionou uma região no meu braço que se chama plexo braquial. Por esse motivo, o meu braço direto tem limitações de movimento, ou seja, sou PCD [pessoa com deficiência]. Devido a esse acontecimento, sempre fiz muitos questionamentos e tinha muita curiosidade sobre a área da medicina. Descobri a minha paixão por medicina e fui atrás desse sonho.

No fim de 2013, meu irmão decidiu se mudar para Divinópolis. Fui atrás dele no ano seguinte, pois o meu objetivo era conseguir uma bolsa de estudos em um curso pré-vestibular e trabalhar por meio período, coisa que era difícil de eu conseguir na minha cidade natal.

Passei a participar de processos seletivos para ganhar uma bolsa. Enquanto estudava, tinha que lidar com outras dificuldades. Quando chegamos em Divinópolis, o meu irmão que trabalha de pedreiro não era tão conhecido. Sem emprego, chegamos a ficar seis meses sem água e luz. Além disso, eu tinha dinheiro para definitivamente nada no início.

Ganhei uma bolsa de 80% em um cursinho, e meu pai me ajudava a pagar os 20%, que na época era uns R$ 120. Depois, mudei de cursinho e ocorreu da mesma forma. Fiquei conhecida na cidade e três professores me ofereceram aula particular gratuitamente, porque sabiam que eu queria muito medicina, mas não tinha dinheiro para investir nos estudos.

Era uma dura jornada de não ter dinheiro nem para ônibus, e só comia em casa. Dormia em um sofá porque não tinha um quarto. Esse sofá ficou com um buraco exatamente na posição que eu deitava. Meu irmão o tem até hoje, mas atualmente eu dei um novo de presente para ele.

Na época, tinha que me virar com o emprego que aparecesse. Fui vendedora de sapatos e atendente de telemarketing. Depois, fui para uma uma assessoria de cobrança e, após sete meses de trabalho, fui promovida. Mas tinha uma carga horária muito pesada. Trabalhava das 12h às 21h e estudava até de madrugada quando chegava em casa. Minha saúde mental ficou péssima.

"Diziam que medicina não era para pobre"

Isabella da Silva - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Isabella criou o perfil Negritude de Jaleco nas redes sociais para falar sobre mulheres pretas na medicina
Imagem: Arquivo pessoal

A luta foi seguindo e outras adversidades aparecendo em meu caminho. Infelizmente, vivemos em uma sociedade ainda muito preconceituosa. Então, o racismo e a discriminação já me atingiram algumas vezes nessa trajetória. As pessoas sempre me diziam que eu não tinha 'cara de médica', no sentindo de que, para elas, uma mulher preta, de cabelo crespo e PCD não era a cara da medicina.

Lembro que esses comentários vêm desde sempre na minha vida. Certa vez, minha mãe me levou ao médico, quando eu era mais nova, e disse a ele que queria ser médica também. A resposta foi: 'Primeiro ela tem que aprender a falar direito'. Disse exatamente com essas palavras.

No passado mais recente, muitos me criticavam dizendo que medicina não era para pobre e que era para eu desistir.

Não sofri preconceito com ofensas na faculdade, mas já passei por situações em que as pessoas falavam que eu era tudo, menos estudante de medicina. Ou de questionarem se o que eu fazia era medicina mesmo, me pedindo até para ver documentos e fotos. Eu falo que são situações que as pessoas nunca irão assumir que são racistas, mas o viés racial está a ali, a todo momento.

Sou uma pessoa feliz e muito forte, mas confesso que cansa ser forte o tempo todo. Só queria viver sem ter que lutar sempre para existir.

Ao mesmo tempo que eu penso nisso, lembro que os meus antepassados morreram para que, hoje, eu ocupasse essa posição. Há menos portas fechadas para mim do que havia para eles. Logo, eu vou continuar lutando para que as crianças pretas possam crescer com menos dores do que eu e que possam ter mais oportunidades do que eu tive.

O que me fortalece é pensar que serei a primeira médica da família e irei romper com o ciclo de posições de subalternidade. Toda profissão é digna, mas se, por gerações, uma família inteira ocupa apenas uma posição, é porque tem algo de errado acontecendo.

Na minha família, faltaram oportunidades, mas nunca faltou esforço. Meus pais trabalham desde os 13 anos de idade e, se eu for retroceder mais um pouco na minha árvore genealógica, já chego nos meus parentes que eram escravos, infelizmente.

Acredito que, por meio dessa vitória, irei mudar a realidade da minha família e da geração futura. Infelizmente, eu ainda sou a minoria na medicina, mas a minha luta é para que mais Isabellas se formem médicas.

"Pelas redes sociais, luto contra preconceitos"

Eu me formo no ano que vem, mas ainda não faço ideia de qual especialidade seguir. No momento, só sei das que não quero. Enquanto isso, vou fazendo meu trabalho na internet.

Comecei nas redes sociais porque sentia falta, e ainda sinto, de mulheres pretas na medicina. Principalmente criando conteúdo sobre esse nicho na internet.

Com isso, decidi criar o perfil Negritude de Jaleco. Além de lutar contra os preconceitos e racismo, mostro que as pessoas pretas não falam apenas sobre racismo, que temos vivências, histórias, falamos de nossas profissões, sonhos e queremos ser valorizados em todos esses espaços e durante todos os meses do ano, não apenas em novembro, no Mês da Consciência Negra.

É preciso dizer que, infelizmente, iremos passar por muitas dores e sofrimento. Mas você só vai saber se vai conseguir chegar lá se tentar. Então, corra atrás, ignore as críticas e vá em busca dos seus sonhos. O meu está mais perto a cada dia, e o seu?" Isabella Maria da Silva, 25 anos, estudante de medicina, em São João del-Rei (MG)