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Violência obstétrica: o que é e o que fazer caso você seja a vítima

kieferpix/Getty Images/iStockphoto
Imagem: kieferpix/Getty Images/iStockphoto

Rafaela Polo

Colaboração para Universa

13/02/2022 04h00

A violência obstétrica não é algo novo, mas o assunto ganhou os holofotes quando a influenciadora Shantal Verdelho alegou ter sido vítima durante o parto de sua segunda filha. Vídeos e áudios mostram que ela foi xingada por seu médico, o obstetra Renato Kalil. Após o ocorrido, além de denunciá-lo, ela prometeu lutar para criar um projeto de lei para que nenhuma mulher tenha que passar pelo mesmo que passou.

Apesar do termo estar tão disseminado, a Comissão de Defesa e Valorização Profissional da Febrasgo, Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, não recomenda o seu uso. Em nota oficial, o órgão disse que: "Inicialmente, é importante explicar que a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) não utilizam o termo violência obstétrica. No Brasil, a Febrasgo também não recomenda sua utilização visto que o termo remete a ideia de que o obstetra seria um ser violento. E, de nenhum modo, o obstetra deve ser violento. Nesse sentido, para melhor discussão sobre o tema, a Febrasgo utiliza os conceitos de respeito à gestante e à parturiente, uma vez que abrange toda a estrutura e corpo profissional ligado à assistência da gestante".

Ser vítima de algo tão cruel em um momento que deveria ser marcado por pura felicidade não é fácil. As mulheres ficam mais frágeis, hormônios à flor da pele e precisam, sim, confiar que o médico que escolheram vai ajudá-la a passar por esse processo que é tão delicado e cheio de dúvidas. Universa falou com médicos e advogados para saber o que fazer caso você conheça alguém que foi vítima.

O QUE É VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

Mas afinal das contas, o que é violência obstétrica? Apesar de estar muito associada ao momento do parto, é qualquer tipo de agressão, abusos ou maus tratos sofridos pela mulher em todo período da gestação ou no puerpério. "É uma agressão moral ou física que a paciente pode sofrer dos profissionais da saúde no parto ou durante o pré-Natal", diz a ginecologista especializada em cirurgia ginecologia e uroginecologia no Hospital das Clínicas (USP), Débora Ória. É importante reforçar que violência é diferente de mudança de curso no plano por indicações médicas.

Ter um parto natural humanizado pode ser um grande sonho, mas se algo acende uma luz vermelha, o médico precisa agir a favor da vida da mãe e do bebê. " Seria ótimo se todos os partos fossem normais, mas se o bebê estiver em sofrimento ou não houver dilatação, é preciso mudar para cesárea", conclui Débora. Assim como a médica, a Febrasgo também destaca que é necessário saber diferenciar as ações. "Importante diferenciar o desrespeito à gestante das situações onde ocorrem más práticas médicas - como, por exemplo, a realização da manobra de Kristeller, onde a pressão sobre o fundo do útero é utilizada para acelerar a expulsão do feto, que hoje é considerada uma manobra não recomendada. Dada a heterogeneidade das estruturas de saúde, no país, e, por consequencias, as disparidades em experiências de gestação e parto, é fundamental o emprego de terminologias específicas para cada situação", diz a nota.

"Procurar uma consulta de pré-natal e não encontrar um médico disponível; buscar uma vaga disponível em maternidade e não conseguir; não haver um anestesiologista para promover a analgesia durante o trabalho de parto; receber algum tipo de tratamento inadequado ou pouco polido oriundo de quaisquer profissionais que atuem no âmbito de unidades de saúde (desde o segurança, ascensorista, recepcionista a até profissionais médicos e enfermeiros)", são situações que, para a Febrasgo, configuram um contexto de desrespeito à gestante.

Nenhum parto é igual, então comparar sua experiência com a de uma amiga, muitas vezes, não será esclarecedora para esse caso. "Não é uma receita de bolo. Qualquer cirurgia e procedimento será diferente entre pacientes. Intercorrências acontecem", diz Débora. O que você passou e uma conhecida passou nunca será igual. Por isso, é importante estar atenta aos sinais do seu momento de parto e pré-Natal. Se tornar algo diferente no comportamento do médico, vale analisar se aquilo é normal ou se não deveria estar acontecendo.

FUI VÍTIMA, O QUE FAZER?

Como violência obstétrica não está na constituição, ela pode ser enquadrada criminalmente como lesão corporal, assédio moral e até mesmo, homicídio. "Dependendo do caso, o médico pode responder de lesão corporal até homicídios, que são crimes comuns que temos na lei. O que determina é o que aconteceu", diz Adib Abdouni, advogado criminalista e constitucionalista .

Se a mulher está se sentindo lesada pelo atendimento médico, há muitas ações que podem ser tomadas, mas Débora Ória afirma que, antes de qualquer coisa, vale uma conversa franca com o profissional. "Questione o médico e pergunte o motivo do comportamento. A paciente pode, a qualquer momento, procurar outro profissional. Assim como o obstetra também pode não atender mais a paciente caso seja vítima de algum tipo de violência. Quando não há confiança, minha orientação é trocar de assistência", diz. Em um momento tão delicado na vida da mulher, o que ela mais precisa é tranquilidade e confiança para tomar as decisões.

Se a conversa não funcionar, é possível entrar na justiça contra o profissional da saúde. "O ideal é que ela procure um advogado para ser melhor assessorada na hora de prestar queixa. Mas na impossibilidade, a vítima também pode buscar a defensoria, Ministério Público ou autoridades policiais, fazendo um BO na própria delegacia", diz Fabricio Reis Costa, advogado criminalista do escritório Alamiro Velludo Salvador Netto Advogados Associados. O processo da violência obstétrica funciona como o de qualquer outro crime. "Primeiro se registra o boletim de ocorrência na delegacia ou, por meio de um advogado, se faz o pedido da instauração de inquérito. A partir disso, a polícia vai investigar e, ao final de todo o levantamento dos fatos, o delegado manda um relatório final para o Ministério Público condensando as informações. O MP vai analisar e formalizar, ou não, a acusação", diz Fabrício. A partir disso, se o médico de fato cometeu a violência vai precisar depor na frente do juiz. E se ele não tiver provas suficientes para se defender, pode ser condenado criminalmente. Mesmo assim, no meio desse processo, a vítima ainda pode entrar com um processo de indenização civil, para receber compensação financeira por danos morais e materiais, por exemplo.

Uma das partes mais difíceis dessa coleta de provas é fazer o exame de corpo de delito, que é indispensável nesse tipo de caso. "Se for algo que feriu a parte íntima, é preciso fazê-lo, sim. E isso pode ser feito de imediato, até dentro do hospital, com o auxílio de um médico legal", diz Adib.

Já a Comissão de Defesa e Valorização Profissional da Febrasgo dá outra orientação. "Caso a gestante ou parturiente perceba que está recebendo um tratamento inadequado, que está sendo desrespeitada, ela deve registrar o ocorrido junto ao Conselho Regional de Medicina do estado onde foi atendida. O órgão é o responsável pela vigilância e apuração acerca de inadequações de condutas. Caso as queixas se confirmem, o profissional receberá as devidas sanções".

QUANTO TEMPO DEMORA ESSE TRÂMITE

Na justiça, nada é rápido. Há quem diga que todo o processo, até uma condenação criminal do médico, pode durar de dois a cinco anos. "O Brasil tem o tamanho de um continente e a estrutura da polícia em São Paulo é diferente da polícia de Pernambuco, que é diferente da polícia de Rondônia. Em média, um inquérito leva um ano ou um ano e meio para ser concluído, que é a primeira fase. Depois disso, se o médico for denunciado, pode demorar mais um ano para a segunda instância, mais dois para a segunda instância. O que nos leva, mais ou menos, a cinco anos para condenação criminal. Na esfera cívil, esse processo é bem mais rápido", diz Fabrício. Sim, todo o processo pode ser muito desgastante. Mas nem por isso devemos deixar de denunciar os profissionais envolvidos.

Para não passar por tudo isso, é possível sim fazer um acordo. Contudo, depende muito da natureza da lesão. Se a consequência da violência obstétrica é um homicídio, por exemplo, nem que a vítima queira retirar a queixa, será possível. O Ministério Público, ao saber do problema, não pode se omitir e tem que seguir adiante com a investigação. Se não houver nenhum dano à integridade física nem da mãe e nem do bebê, e for algo mais semelhante ao que aconteceu com a Shantal, é possível.