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Elas são trans e lésbicas: 'Gênero é uma coisa, sexualidade é outra'

A professora Gabrielle Weber é uma mulher trans e lésbica - Arquivo pessoal
A professora Gabrielle Weber é uma mulher trans e lésbica Imagem: Arquivo pessoal

Gabryella Lima

Colaboração para Universa

02/02/2022 04h00

A advogada Amanda Souto Baliza, 30, se deparou com o sentimento de estar fazendo algo errado durante sua transição. Ao mesmo tempo que não se via como homem, pensava que, por se reconhecer como uma mulher trans, deveria sentir atração por eles, mas não sentia. "Fui aprendendo a separar a questão de gênero da sexualidade na terapia e, só então, consegui me identificar com quem realmente sou."

Se essa separação não é óbvia nem para quem vive a experiência de ser uma mulher trans e lésbica, para o resto da população ainda é mais difícil de compreendê-la, pois ainda é comum haver confusão entre identidade de gênero e orientação sexual.

Como explica a psicóloga Paola Ruchinsque, especialista no tema, os conceitos tratam de coisas diferentes, mas há uma aproximação entre eles dentro da lógica binária e heterossexual que impera na sociedade, ou seja, que entende só existir homem ou mulher e que um sentirá atração pelo outro, apenas.

"A identidade de gênero é a maneira que o indivíduo se percebe no mundo. Já a sexualidade diz para quem ele vai direcionar desejo, afeto e interesse em se relacionar, não tendo a ver com a forma com a qual se vê", diz.

Abaixo, leia os relatos de três mulheres trans lésbicas, que falam sobre a dificuldade de se reconhecem e desabafam sobre os preconceitos que sofrem, inclusive dentro da comunidade LGBT.

"Existe expectativa que de que eu tome iniciativas esperadas de homens"

A advogada Amanda Souto Baliza - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A advogada Amanda Souto Baliza
Imagem: Arquivo pessoal


Antes da transição, Amanda conta que se apresentava como um homem heterossexual e que ao dizer ser mulher e lésbica, sua família teve dificuldade em compreender. "Nunca tive o estereótipo do gay afeminado, pelo contrário. Me viam como um homem hipermasculinizado, eu até usava barba. Quando contei [que era trans e lésbica] para minha mãe, foi bem complexo, e ela até disse que se eu gostasse de homens em vez de mulheres seria mais fácil para ela entender", relembra.

Agora, ela vive a liberdade de ser quem é aproveitando a "solteirice". "É um sentimento muito bom que defino como alívio, pois antes era tudo muito pesado e carregado", diz.

Por outro lado, mesmo com o sentimento de leveza e liberdade, ela também chama a atenção para a fetichização e sexualização dos corpos de mulheres trans. Sempre que fica ou conversa com outra mulher, Amanda relata que há muita curiosidade que a deixa em dúvida: é atração real ou só fetiche?

Ela também critica o fato de, dentro de uma relação entre uma mulher trans e uma mulher cisgênero — aquela que se identifica com o gênero colocado ao nascer — , seja cobrado um papel masculino por parte da primeira. Em partes, isso se deve a uma construção social que acaba associando genitália a masculinidade.

"Existe uma expectativa de que eu realize algumas funções, isso me incomoda bastante. Quando eu saio com alguma menina, não tomo nenhum tipo de iniciativa que é esperada do gênero masculino, não dou meu braço a torcer".

Ela também destaca que, muitas vezes, por essas imposições e expectativas, a comunidade LGBTQIA+ acaba sendo até mais violenta do que as pessoas de fora. "No começo, tinha uma visão muito fantasiosa porque se vende a imagem de que tudo é colorido e bonito dentro do movimento", diz.

"Mas quando comecei a interagir, vi que não era bem assim. Os preconceitos dentro da comunidade são muito mais violentos do que os que eu sofria lá fora. Hoje, ando com a guarda muito alta em eventos com a temática lésbica e evito ter contato com ideologias que não nos recebam bem para evitar constrangimentos".

"Fiz um trato com minha esposa de que iríamos tentar seguir juntas após a transição"

"É como se antes eu vivesse em uma prisão sem muros e não pudesse ser quem sempre fui." É assim que a professora universitária Gabrielle Weber, 37, descreve a sensação de viver plenamente sua identidade e sua sexualidade. Ela mantém um relacionamento com uma mulher desde antes da transição e diz que a relação com a companheira melhorou bastante.

O processo de se entender como uma mulher trans lésbica, porém, não foi fácil. Houve momentos de muitos questionamentos e confusão, como desconfiar de que era bissexual.

"Demorou algumas décadas para eu conseguir separar os conceitos de sexualidade e identidade de gênero e perceber que eles são independentes. Antes, via alguma menina e questionava se era atração ou se, na verdade, eu queria ser igual a ela. Pensava que não fazia sentido ser mulher e gostar de uma outra mulher e acabava me forçando a sentir atração por homens. Tinha medo de a sexualidade mudar após a transição e não saber lidar com isso", conta.

"Tinha evidências de que minha esposa era bissexual, então isso me deu mais segurança de me abrir com ela, mas só descobrimos como realmente iria funcionar depois que a transição aconteceu. Fizemos um trato de que iríamos tentar. E deu certo".

"Parecia que ser trans e lésbica era incompatível"

Raíssa Éris Grimm Cabral - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A psicóloga Raíssa Éris Grimm Cabral
Imagem: Arquivo pessoal

A falta de referências na adolescência da psicóloga e poeta Raíssa Éris Grimm Cabral, 36, a fez pensar que não poderia ser lésbica e trans ao mesmo tempo.

"Quando via mulheres trans, elas eram heterosexuais e, quando eram lésbicas, sempre eram cisgênero. Parecia que ser os dois era incompatível."

Ela diz que o processo para viver sua identidade e sexualidade não foi linear. Hoje, afirma estar tranquila e resolvida após passar por uma "tempestade".

"É desafiador, mas tenho encontrado alianças pelo caminho. Uma coisa que mudou muito em mim foi a percepção de que eu não preciso que autorizem quem eu sou no mundo. Antes, sentia que se nenhuma mulher cis me desejasse, talvez eu não fosse mulher de verdade."

Como Gabrielle, Raíssa também aponta transfobia e estigma dentro da própria comunidade LGBT. "O discurso não é transfóbico, às vezes até são aliadas da causa, mas desde que a mulher trans seja heterossexual."

Mas ela diz que sente essa imposição vindo muito mais de mulheres bissexuais do que de lésbicas. "Mesmo que de forma sutil, sinto que é mais comum projetarem em mim uma expectativa de performar o masculino. Não é nem de forma explícita, é algo mais velado, mas sentia como me tratavam, e isso me dava bastante desconforto", conta.

Essa expectativa, diz, existe inclusive na relação sexual. "É como se aquela que performa masculinidade fosse proporcionar prazer, e a mais feminina é a que relaxa e goza. Isso é um controle muito grande sobre os nossos corpos. Cada um responde de uma forma aos estímulos. Seguir um roteiro só nos limita e deixa tudo mais chato."