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Sargento da PM é investigado por ameaça após beijo: 'Adoeci', diz soldado

Dois casais homoafetivos se beijam durante formatura na PMDF: o soldado Henrique Harrison sofreu ataques homofóbicos Imagem: Arquivo pessoal

Luiza Souto

De Universa

21/01/2022 04h00

Era 12 de janeiro de 2020 quando o policial militar Henrique Harrison da Costa realizava o sonho de se tornar soldado para combater a criminalidade no Distrito Federal: após 7 meses de curso, ele se formava naquele dia e, para celebrar, selou um beijo no marido, Jadson Lima. Mas a foto da comemoração, postada na sua rede social, despertou ódio na corporação e rendeu investigação por homofobia.

Em um áudio enviado em grupos de colegas da PM, o tenente-coronel da reserva Ivon Correia reclamou do que ele considerava "avacalhação", e afirmou que na corporação deve-se "sempre preservar a honra e o pudor do policial militar". Em outro áudio, um sargento identificado como Astrogilson Alves de Freitas foi além, e ameaçou Henrique. Na mensagem de voz, ele disse que "pode até ficar calado, mas tem outros jeitos de 'sancionar' esse tipo de situação".

Dois anos após o episódio, a polícia civil da capital abriu inquérito, no último dia 10, para apurar o crime de homofobia contra Freitas. Henrique, que está afastado da corporação por problema de saúde provocado após o episódio, comemora, mas diz temer por sua segurança:

"Confio na PMDF, e não quero criticar nenhum superior, até para não ser mais punido, porque todas as retaliações que sofri desde então vêm da Corregedoria da PM. O sentimento é de desespero, e só preciso de ajuda. Quem faz isso se sente representado por um presidente homofóbico descaradamente, que é o Bolsonaro", desabafa ele após apontar que vem sofrendo represálias desde então.

Intolerância, praticados com a intenção de inferiorizar as pessoas LGBTs, assim como atos que incitem a discriminação e o ódio contra esse grupo de pessoas, são crimes graves, imprescritíveis e inafiançáveis, pois se enquadram na lei de racismo, punidos com pena de reclusão de até 5 anos e multa.

A lei de racismo prevê a perda do cargo ou função pública para o servidor público em caso de condenação. Ou seja, se comprovado o crime, o envolvido pode ser afastado da corporação. Ele também pode sofrer as punições administrativas.

Onze viraram réus por ataques

Além dos áudios de Ivon Correia e Astrogilson de Freitas, outros agentes de segurança postaram ofensas ao casal em grupos de Whatsapp da corporação. Um deles dizia que o casal era "uma afronta geral para os militares", outro falava que tinha sido "exposto ao ridículo", além de agressões como "esses aí não tem moral nem para catar cocô de cachorro, imagina fazer abordagens".

Por causa dessas agressões, em maio de 2021, 11 pessoas, entre elas seis policiais militares e um bombeiro, viraram réus por crime de homofobia. Dessas, Correia foi condenado a pagar R$ 25 mil por danos morais a Henrique. Depois disso, em outubro último, Astrogilson foi condenado na 15ª Vara Cível do Brasília a pagar R$ 5 mil. Henrique afirma que não recebeu os montantes ainda.

A Universa, a delegada-chefe da Decrin (Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa, ou por Orientação Sexual, ou Contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência) Angela Maria dos Santos explicou que o inquérito aberto recentemente foi um pedido do Ministério Público para que se confirmasse a autoria do áudio, atribuída a Astrogilson.

Segundo Angela, a Corregedoria da Polícia Militar já foi comunicada da abertura do inquérito para que a corporação comunique o coronel das investigações.

Procurada, a defesa de Astrogilson informou que nem o escritório ou o agente receberam qualquer informação oficial sobre a instauração de inquérito, e que por isso não teria como se manifestar.

Com relação à condenação por danos morais contra Freitas, o advogado Marcelo Almeida informou que já recorreu da decisão por não concordar "em hipótese alguma com a sentença", mas que continuará respeitando as decisões judiciais. Universa questionou se o coronel se arrepende da atitude, mas não houve retorno.

Por e-mail, a PMDF escreve que "sempre seguirá o devido processo legal dentro do arcabouço legislativo, respeitando sempre os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência". A corporação não informou quais medidas tomou ou tomará a respeito dos policiais envolvidos nos ataques.

Também por texto, o Núcleo de Enfrentamento à Discriminação (NED) do Ministério Público do Distrito Federal (MPDFT) informou que após o caso vir a público, solicitou ao Comando-Geral e à Corregedoria da PMDF adoção de providências, e que pediu ainda informações quanto a medidas preventivas adotadas pelo órgão para promoção da diversidade e respeito aos direitos das minorias.

"Perseguição me levou à depressão"

A Universa, Henrique diz que adoeceu após o episódio, e hoje está afastado da corporação.

"Estou afastado por gastrite nervosa por conta desses últimos acontecimentos. Nunca tive nada gástrico, muito menos depressão e ansiedade. Tudo por causa disso."

Além dos áudios e das ameaças em texto, Henrique afirma que vem sofrendo retaliação da corporação, com três sindicâncias abertas, numa tentativa de silenciá-lo.

A primeira, ele conta, aconteceu logo após o áudio homofóbico tornar-se público. Ele foi às redes falar como foi passar pela formação militar enquanto gay, e comentou sobre os ataques. No vídeo, publicado no Youtube, aparece sua arma numa bancada ao fundo, e por isso, conta, foi punido.

Na polícia, não pode "portar-se de maneira inconveniente ou sem compostura" nem "discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado". Ele se defende:

"Não existe porte de arma dentro de casa. Isso é posse. É outra coisa. Ainda expliquei, no processo, que era um simulacro. Nem houve perícia. Fizeram isso porque queriam me acusar de alguma coisa. Suspenderam meu porte por seis meses como medida cautelar, que é uma atitude tomada contra policial que está respondendo por Maria da Penha (lei que versa sobre violência de gênero), ou oferece perigo por estar armado. Já com o sargento, que praticamente me ameaçou de morte, não fizeram nada", fala Henrique.

Numa tentativa de conseguir apoio, o soldado procurou um deputado estadual Fábio Felix (PSOL), que atua pelos direitos humanos na capital, e o parlamentar enviou alguns ofícios pedindo explicações à PMDF. Veio outro procedimento contra Henrique. Dessa vez, descreve, a justificativa da corporação foi a de que o soldado faltou com a verdade: no documento, o deputado citou que o policial afirmou ter tido o seu porte de arma cancelado.

"Foi o deputado que usou o termo 'cancelado' em seu ofício. Mas pegaram sua fala e abriram sindicância. Na polícia, dependendo do número de sindicâncias, podem abrir um procedimento para me excluir da corporação, então acredito que estejam fazendo isso como tática para me desligar", ele opina.

No meio dessa tempestade toda, Henrique casou-se com seu companheiro, o que aparece beijando o soldado em sua formatura. No dia da cerimônia, em que usou farda especial para casamento, deu uma entrevista falando sobre a suspensão do porte de arma, e por isso abriu-se uma terceira sindicância contra o policial: não se pode dar entrevista sem autorização:

"Depois disso tudo, dei uma outra entrevista para uma revista onde conto toda essa história, e veio a pior retaliação: eles abriram um inquérito policial militar, por criticar ato superior, e isso é crime. Foi quando eu tive uma crise de pânico, porque comecei a ficar com medo, e me afastei. Quando retornei, me colocaram na área de arquivo, numa sala minúscula com um monte de processo de 1970."

Sonho minado

O sonho de Henrique era combater a alta taxa de criminalidade na capital, mas ele começou a ser minado antes da sua formação. Hoje, vem repensando a carreira e cogita voltar à atividade como DJ, anterior à entrada na Polícia Militar. Ele voltou a atuar com música como uma terapia contra depressão e ansiedade.

"Quando fiz o curso na polícia militar, comecei a me apaixonar pela diferença que eu podia fazer, porque como cidadão já tinha sido maltratado pela polícia, com abordagens agressivas por ser gay. Mas tentam calar de alguma forma todo mundo que se destaca", ele aponta.

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