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Religiosos ajudam mulheres em rodeio: 'Muitas são dopadas por amigos'

Luiza Souto

De Universa

17/01/2022 04h00

"Desculpe não atender antes, mas estava ajudando uma vítima de violência", justifica a missionária Lilian Santos, 35 anos, a Universa, após adiar a entrevista mais de uma vez. Ela faz parte da Jocum Brasil (Jovens Com Uma Missão), ONG formada por grupo religioso que, entre outras frentes de trabalho, resgata mulheres alcoolizadas e passíveis de abusos em festas como a do Peão de Barretos (SP), tradicional evento que acontece no interior desde 1956. Em 2019, atraiu um público de 800 mil pessoas em 11 dias de festa.

"A bebida no local costuma ser cara e muitas meninas já chegam sem conseguir se sustentar. Os amigos, para não perderem a noite cuidando delas, as colocam deitadas em um canto, e nisso elas acabam sendo abusadas. Então, vamos resgatá-las", descreve a moradora de Uberlândia (MG).

No fim de novembro último, a estudante universitária e influenciadora digital Franciane Andrade, de 23 anos, contou por meio de uma série de stories em seu Instagram que descobriu ter sido dopada e estuprada no rodeio de Jaguariúna (SP).

Em seus depoimentos na rede, ela relatou ter sentindo dores, e se deu conta do crime ao procurar um médico. "Acabei de correr atrás de B.O., fui no IML [Instituto Médico Legal] em Mogi Guaçu [cidade em que reside], fiz um exame, a polícia constatou que houve estupro e não sabe me dizer se foi um, dois ou três [homens]", relatou.

De acordo com o registro policial ao qual Universa teve acesso, ela disse que estava bebendo na festa com seus amigos e que, depois de certo momento, não se lembra de mais nada. Recorda-se, apenas, de ter acordado no meio da madrugada em uma rotatória, nas proximidades do local onde o evento era realizado.

Após publicação deste caso, uma leitora chamou atenção para o trabalho da Jocum, voltado também para evitar esse tipo de situação: "Eles passam a noite inteira pegando mulheres em estado vulnerável, abrigando e cuidando até que estejam sóbrias o suficiente para serem levadas para casa. Com isso evitamos milhares de estupros", relata a leitora.

Fomos atrás para conhecer o trabalho do grupo.

Ideia nasceu na América Central e reúne 18 mil pelo mundo

A Jocum surgiu na década de 1960 após o estudante americano Loren Cunningham passar um tempo em oração durante viagem nas Bahamas com um grupo evangélico. O movimento chegou ao Brasil na década seguinte, em 1975, e hoje, de acordo com o site da instituição, há 66 escritórios e centros de treinamento missionário no país. Pelo mundo, são 18 mil voluntários, sendo 1,5 mil brasileiros.

Entre as atividades dos voluntários está a de acolher crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade em casas mantidas pela entidade, combate ao tráfico de pessoas, tratamento a dependentes químicos e abrigo a mulheres vítimas de violência. No meio de suas ações, os cristãos aproveitam para pregar a sua fé.

Foi o que aconteceu há cerca de 25 anos, quando quatro missionários escolheram a Festa do Peão de Barretos para evangelização. Enquanto ajudavam a organizar a entrada do público, por exemplo, indicando os locais de atendimento, falavam sobre Deus e a Bíblia para quem ali chegasse.

O número de religiosos foi crescendo a cada ano e, hoje, cerca de 300 pessoas participam das edições anuais, dentro do projeto chamado Promoção Humana. Eles permanecem em uma área de camping oferecida pelo evento, e a organização fornece alimentação. O grupo, então, se divide por área. Lilian atuava com resgate de mulheres nas madrugadas.

"Quando dava uma hora da manhã, a gente sabia que encontraria meninas alcoolizadas e dopadas, muitas vezes pelos próprios amigos. Levávamos para o posto de saúde e comunicávamos à polícia. Depois, seguíamos para o nosso acampamento. Esperávamos elas se recuperarem para entrar em contato com a família. Algumas acordam sem saber onde estão", descreve Lilian.

Em uma das páginas da ONG, uma seguidora relata que passou por situação parecida. Ela escreveu em um post: "Durante o trabalho, uma missionária precisou ir ao banheiro. Enquanto esperava na fila, um outro missionário notou uma menina muito bêbada, sentada no banco. Levaram a menina no pronto atendimento para tomar soro e, depois, para o nosso camping devido à falta de enfermaria. Essa menina estava sozinha em uma situação extremamente vulnerável. Coisas terríveis poderiam ter acontecido, mas Deus manifestou seu grande amor ao enviar seus filhos para cuidar dela."

Segundo a missionária Lilian, que deixou a profissão de instrumentadora cirúrgica para atuar exclusivamente na Jocum, não há tentativa de conversão religiosa nesse trabalho:

"Entendemos que o resgate já é uma evangelização. Em muitos momentos não há necessidade de falar algo. O evangelho está nas atitudes."

O coordenador do Projeto de Promoção Humana é o missionário Thiago Oliveira Carvalho, de 40 anos, vice-diretor da equipe Jocum de Maringá (PR). Ele garante que o compromisso do grupo é prestar serviços, sem fazer uso de doutrina específica. O Jocum também atua em outros eventos grandes como o Rock in Rio e em Carnavais.

Vemos situações de casais se agredindo, e chamamos a segurança. Já fizemos vaquinha para meninas que são deixadas para trás por amigos conseguirem ir embora. Orientamos também a denunciar alguma situação de violência. Tem posto da polícia civil, mas a maioria não quer se expor, muitas vezes porque a família nem sabe que ela está ali.

Thiago Oliveira Carvalho, missionário

"E se o indivíduo der abertura e houver entendimento de que não estamos sendo invasivos, conversamos sobre a palavra de Deus", complementa Thiago.

Grupo é ligado a Damares e já foi acusado de sequestro de indígenas

Apesar do trabalho voltado à promoção humana, o Jocum já foi denunciado ao MPF (Ministério Público Federal) por retirar crianças suruwahás de seu território durante atuação dos missionários Márcia e Edson Suzuki, em 2006. O povo indígena que vive na região sul do Amazonas tem poucos laços com a sociedade e soma cerca de 200 integrantes. Em sua cultura, o suicídio é comum, e sob esse argumento os evangélicos dizem atuar ali para impedir as mortes.

O casal Márcia Edson se aproximou dos suruwahás pela primeira vez em 1985 para estudar sua língua. Em 1997, segundo um documento da Funai (Fundação Nacional do Índio), a dupla passou a realizar "de modo aberto uma nova fase de doutrinação religiosa de tipo fundamentalista" na comunidade. Por isso, em dezembro de 2005 foi firmado um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) entre MPF (Ministério Público Federal), Funai, Funasa (Fundação Nacional de Saúde) e Jocum para que os missionários abandonassem o local.

Em 2006, porém, eles foram contratados pela Funasa para atuar como intérpretes no atendimento a uma criança diagnosticada com retardo de crescimento e de desenvolvimento neuropsicomotor. E teria retirado dali a menina Iganani, com sua mãe, Muwaji. No ano seguinte, o casal voltou ao território e levou outra criança, Inikiru, de 9 anos, e um filho de Muwaji, na época com 12.

Muwaji e Inikiru se tornaram missionárias na Jocum, e em 2020 participaram de uma expedição junto aos ministérios da Saúde e da Mulher, Família e Direitos Humanos para sanar uma "crise de saúde mental" que estaria por trás de suicídios entre os indígenas suruwahá. Elas atuaram como intérpretes.

Pastora evangélica, a ministra Damares já atuou pela Jocum com crianças indígenas e depois fundou a organização Atini, em 2006. O objetivo da instituição seria impedir a prática do infanticídio indígena.

"Todo trabalho é feito com doações"

Apesar da proximidade com Damares Alves, os integrantes garantem que todo o trabalho dos missionários é realizado por meio de doações. Lilian, por exemplo, aponta ter parceiros que enviam valores mensais para manter a família e o trabalho. Igrejas também auxiliam. Quando não está atuando em Barretos, ela dá aconselhamento a mulheres vítimas de relacionamento abusivo e em processo de divórcio.

"Infelizmente, algumas denominações são muito fechadas para esse tema, e existe preconceito com a mulher divorciada e que sofreu com qualquer tipo de violência. Eu passei por um relacionamento abusivo, sou divorciada, fui julgada, mas quem me ajudou foi um pastor. Foquei meu trabalho nisso", conta ela, que é mãe de duas crianças, de 7 e 6 anos.

Thiago endossa:

"Todo pessoal da Jocum é voluntário, e cada um é responsável pelo seu próprio sustento. Não temos relação com governo. Eu trabalhei ajudando vítimas de terremoto no Haiti e levantei recursos com bazar e doações."

Uma consulta no Portal da Transparência, porém, aponta que em 2018 um braço da Jocum no Acre recebeu R$ 150 mil do Fundo Nacional Antidroga, do Ministério da Justiça. O grupo mantém uma Casa Resgate na capital Rio Branco, que cuida de adolescentes envolvidos com drogas. Na época, os missionários mantinham um convênio com a Sesacre (Secretaria de Saúde). Segundo o portal do governo, foi um único depósito realizado.