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Estupro em 'Um Lugar ao Sol': não é tão fácil se reconhecer como vítima

Cecília (Fernanda Marques) e Andréa Beltrão (Rebeca) em "Um Lugar ao Sol" - Reprodução/TV Globo
Cecília (Fernanda Marques) e Andréa Beltrão (Rebeca) em 'Um Lugar ao Sol' Imagem: Reprodução/TV Globo

Luiza Souto

De Universa

17/12/2021 12h50

Após cena delicada na novela das nove "Um lugar ao sol", da Rede Globo, em que a personagem Cecília (Fernanda Marques), filha de Rebeca (Andréa Beltrão), descobriu uma gravidez tubária (quando o óvulo fertilizado se desenvolve fora do útero), seguidores da trama criticaram o fato de a jovem não ter revelado para a mãe que a criança era fruto de um estupro.

Cecília apenas disse que o filho foi gerado em uma "situação bizarra", e o questionamento do público é que o tema deveria ter sido abordado de forma mais aberta, e com mais seriedade. No entanto, não é bem assim que acontece na prática. Muitas mulheres sequer reconhecem que foram violentadas. E, quando se dão conta, têm ainda vergonha e medo de falar. Isso quando não esquecem que são estupradas.

A psicóloga Rose Miyahara atenta que, para muitas vítimas, falar sobre seus traumas pode causar uma catarse. Coordenadora da área de formação do CRVV (Centro de Referência às Vítimas da Violência do Instituto Sedes Sapientiae), em São Paulo, ela conta, inclusive, que o trabalho terapêutico com as vítimas no núcleo consiste em "ir desintegrando minúsculas partículas para que a vítima possa suportar a dor."

"Esse trabalho terapêutico não vai na linha 'se eu falar, resolvo'. Em muitas situações, entrar em contato com o núcleo caótico e desorganizado traz até mais prejuízos emocionais. Nos meios profissionais, a gente tem tido este cuidado. A ideia é dar um outro significado, outro destino àquela inquietação emocional psíquica, e não acontece como uma mágica", ela esclarece, após descrever pelo menos três fatores que levam a mulher a não falar sobre a violência pela qual passou.

Jogo de sedução leva dúvida quanto à violência

De acordo com o código penal, o crime de estupro é considerado quando há violência, e talvez por isso muita gente acha que se a mulher estava alcoolizada ou sem condições físicas e neurológicas de evitar o sexo, ou mesmo é casada, não configura crime, já que "ela pediu", ou tem "deveres conjugais".

Acontece que se ela bebeu, ou estava dormindo ou mesmo foi seduzida a praticar o ato, é estupro de vulnerável, ou mediante fraude. E Rose, que também coordena um grupo de estudos sobre agressores sexuais, explica que justamente por não entender bem as variantes de um estupro a mulher acaba não falando.

"Muitas vezes a violência acontece num contexto de sedução, não necessariamente de coação. Ela pode estar na balada, beber um pouco e querer ficar com o cara, mas sem que isso vá adiante. Porém, no envolvimento, a pessoa usa de sedução e ela vai se deixando levar, identificando e nomeando aquilo como uma coisa bizarra. Isso também é outro elemento muito significativo que faz com que, quando passa, a pessoa fique com receio de falar."

Vergonha

De acordo com a profissional, a vergonha acontece também porque a mulher se sente culpada por não ter conseguido impedir o crime, não teve forças para evitar.

"E até ela explicar por que isso acontece, ela sente que foi cúmplice dessa história", Rose exemplifica.

A repercussão de um caso como esse nas redes sociais e as críticas sobre o fato de a personagem não ter falado abertamente também prejudicam a denúncia, ela acrescenta:

"Imagine para uma pessoa que se identifica com a questão que houve na novela. Ela vai ficar realmente no silêncio por medo de ser julgada. Então, essa coisa da vergonha é muito séria até com relação à perspectiva de violência de gênero. Mulheres apanham, sofrem assédio no meio profissional mas têm vergonha de contar para a família, fazer uma denúncia, medo de perder o emprego."

Esquecimento

Muitas mulheres esquecem que foram violentadas, e de acordo com a profissional esse apagão pode ser fruto de um processo psíquico em relação a uma circunstância traumática. Segundo Rose, o choque de uma vivência traumática quase funciona como um anestésico psíquico e, muitas vezes, nesse estado de anestesia, a pessoa registra as sensações, mas não as imagens.

"Então vem o mal-estar em relação a alguma circunstância semelhante, como uma cena de novela, mas a vítima nem sempre entende que aquele mal-estar é um desdobramento do trauma. É aquilo que a gente chama de amnésia protetiva: ela esquece, bota num compartimento do psiquismo não acessível com receio de que, se aquilo vier à tona, ela pode ter um nível de desestruturação e desorganização muito grande."