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'Clarice Lispector foi uma mulher que nunca se recolheu', diz biógrafa

Clarice Lispector em entrevista à TVE em 1976 - Divulgação
Clarice Lispector em entrevista à TVE em 1976 Imagem: Divulgação

Rafaela Polo

Colaboração para Universa

10/12/2021 04h00Atualizada em 10/12/2021 11h48

Ucraniana de nascimento e pernambucana de coração, Clarice Lispector completaria 101 anos de idade em 2021. Para marcar a data, celebrada em 10 de dezembro, a editora Rocco está lançando "À procura da própria coisa —Uma biografia de Clarice Lispector", escrito por Teresa Montero, uma das maiores especialistas do país na vida da escritora.

O que era para ser uma tese de mestrado em Literatura Brasileira na PUC-Rio se transformou em 31 anos de pesquisa e dedicação à vida de Clarice. Por isso, mais do que relançar sua primeira biografia dedicada à autora, "Eu sou uma pergunta", que estava esgotada desde 2010, Teresa quis fazer algo grandioso: um livro cheio de fotos e informações inéditas que ela pesquisou em documentos originais —até o passaporte de quando a escritora ainda era um bebê foi descoberto.

Com tanta informação, não é surpreendente que a mais nova biografia de Clarice chegue às livrarias com mais de 700 páginas. Teresa havia feito mais de 500 notas e o prefácio de "Todas as Cartas". Com uma longa experiência em livros sobre a correspondência de Clarice, a editora Rocco chamou a biógrafa para fazer parte de sua equipe. "Quando terminei um, passei para o outro. Para fazer 'À procura da própria coisa' foram dois anos e meio em plena pandemia. Foi muito difícil fazê-lo. Então o considero uma homenagem não só a Clarice, mas uma vida de 31 anos que dediquei a essa pesquisa."

Clarice Lispector - Divulgação - Divulgação
Clarice na sala de seu apartamento no Leme junto ao cão Ulisses, em 1976
Imagem: Divulgação

Universa conversou com Teresa para descobrir um pouco mais sobre uma das maiores autoras da literatura nacional. Leia os principais trechos do bate-papo a seguir.

Depois de tanto pesquisar a vida de Clarice, você a considera uma mulher que estava à frente de seu tempo?
Se você considerar que Clarice nasceu em 1920 e que viveu sua juventude na década de 1940, com certeza. Ela trabalhou primeiro na Agência Nacional e depois no Jornal da Noite, quando quase não existiam mulheres trabalhando em redação. Entre os colegas do Jornal da Noite que entrevistei, o Francisco de Assis Barbosa, que era muito próximo a ela, me contou que não havia mulheres na redação, ela era única. E não ficava só no escritório, não. Ia para a rua apurar reportagens. Ela era uma mulher bem à frente de seu tempo no mercado de trabalho, mas não só. Como cidadã, também. Clarice ingressou na faculdade, era formada em Direito, um curso majoritariamente masculino. E, claro, não podemos esquecer que ela também se distinguiu na literatura. Publicou sua primeira obra em 1943, época em que mulheres publicando seus trabalhos era raríssimo. Ela não foi a primeira, mas faz parte das exceções.

Capa do livro 'À procura da própria coisa: Uma biografia de Clarice Lispector' - Divulgação - Divulgação
Capa do livro 'Á procura da própria coisa: Uma biografia de Clarice Lispector'
Imagem: Divulgação

Essa é a segunda edição remasterizada e com mais conteúdo de sua própria biografia de Clarice, lançada em 1999 e esgotada há mais de 10 anos. O que ela traz de novidade?
A edição de "Eu Sou Uma Pergunta" está esgotada desde 2010. Como estou há 31 anos falando e pesquisando sobre Clarice, fui reunindo muito material e resolvi fazer uma nova edição. Não dava para publicar novamente um livro com o mesmo título com tanto conteúdo novo. O novo livro, o "À procura da própria coisa", é dividido em quatro partes. Na Parte 1, chamada "Itinerário de uma mulher escritora", eu criei um perfil 3x4 com frases que mostram a preferência da autora no teatro, cinema, música e leitura. Nessa parte, também há uma seleção de notas da imprensa daquela época, das décadas de 1940 a 1970, que mostra o que a mídia falava dessa mulher. É uma maneira de conhecê-la através de outra narrativa.

Na parte 2, chamada "Vida-Vida e Vida Literária", há textos mais longos. Abordo a vida dela, a relação que tinha com seu pai e a interferência que ele teve em sua vida. Tento reconstruir, com a ajuda das minhas pesquisas, os cinco anos em que ele passou no Rio de Janeiro, muito próximo de Clarice, antes de morrer com apenas 40 anos. Faço também uma nova árvore genealógica, descobrindo quem são os familiares de Clarice —até mesmo aqueles com diferentes sobrenomes.

Na parte 3 você encontra a minha primeira biografia de Clarice, "Eu Sou uma Pergunta", com modificações, novos capítulos e um diário de bordo sobre bastidores, ressaltando muito o trabalho dos pesquisadores. É o pedaço mais longo do livro. Já a quarta parte é como se fosse um guia turístico dos caminhos de Clarice no nordeste.

Você pode ler esse livro na ordem em que quiser, pois cada uma de suas partes funciona de modo independente.

A obra conta com fotos inéditas de Clarice, certo?
Sim. Na terceira parte do livro, onde há uma versão atualizada da primeira biografia de Clarice, "Eu Sou Uma Pergunta", tem muito material inédito. Para quem não leu, tem um capítulo sobre Recife em que eu tento reconstruir uma visita que ela fez na cidade onde passou sua infância com depoimentos e materiais da época. Aí há fotos inéditas dela, em 1976, quando foi fazer uma palestra na cidade.

Clarice Lispector - Divulgação - Divulgação
Clarice, de lenço branco, na passeata dos Cem Mil
Imagem: Divulgação

De tudo o que pesquisou sobre a autora, quais passagens da vida de Clarice você acredita que funcionariam como inspiração para as mulheres nos dias de hoje?
Na trajetória de sua vida, vejo Clarice como uma mulher simples. Ela tinha muito apreço pelo estudo, mas acredito que se tornou escritora por vocação. Ela gostava de se informar, de ler, estudar e das artes. Acho que a autora deixou um legado de uma mulher que, mesmo vivendo em tempos em que tínhamos poucos direitos, ela acompanhou a nossa evolução. Não ficou recolhida, se colocou. Tanto que ousou ir para a faculdade de Direito, ousou ser jornalista e escritora. Mas ao mesmo tempo, ela casou-se com um diplomata, foi esposa e mãe, como muito desejou.

Em tempos adversos para as mulheres, ela, e muitas outras de sua geração e até mesmo de gerações anteriores, são fontes de inspiração permanente.

Você levou 22 anos para conseguir compilar a primeira versão do seu livro sobre a autora. O que considera tão cativante sobre ela?
Minha primeira aproximação com ela foi como leitora: me encantei com as obras. Para mim, os textos de Clarice sempre foram algo único. Eu me questionava: 'Como uma pessoa pode escrever desta maneira?'. Depois os caminhos foram me levando, não sei nem explicar por que decidi fazer a biografia sobre ela, mas na época não tinha nenhuma. Novamente, foi um desejo da leitora. Fui levada àquilo. Dedicar tantos anos a um tema, uma história e uma mulher envolve também acompanhar a história do Brasil, além de tantas outras coisas. A vida da Clarice acende especialmente um farol por todas as mulheres que foram pioneiras.

Após mais de 30 anos de pesquisas, qual a sensação de colocar o último ponto final no livro? Parece que está se despedindo de uma amiga?
Não é como me despedir, porque um trabalho de pesquisa envolve afeto, não tem despedida. A Clarice estará na minha vida sempre. Mas como pesquisadora de sua obra acredito que, sim, esse será o último livro. O trabalho de pesquisa não tem fim quando você começa a investigar, principalmente no meu caso, que gosto de ir nas fontes primárias de informação. Quero achar o documento oficial. Por exemplo: encontrei no arquivo nacional o processo de nacionalização de Clarice, e com isso, seu passaporte. Com ele em mãos, conseguir reconstruir grande parte do itinerário de sua família até o Brasil. Ela vai sempre me acompanhar, já faz parte da minha vida.

Nunca a conheci pessoalmente, mas sinto que é como se eu tivesse conhecido.

Algo que chamou a atenção, ainda mais em tempos tão fervilhantes em relação à política, é o fato de Clarice ter sido observada pelo governo entre 1950 e 1973. Como conseguiu chegar a essas informações de relatórios policiais?
Já havia relatos de amigos de que Clarice escrevia crônicas no "Jornal do Brasil" em que se mostrava contra a ditadura militar. Por isso, busquei em arquivos públicos para ver se encontrava alguma ficha dela, como faziam dos cidadãos que incomodavam o regime na época. E encontrei algo que mostrava que ela estava sendo observada bem antes da ditadura militar começar. O documento era de janeiro de 1950, na época do governo Dutra. Não tenho resposta sobre o motivo que a levaram a ganhar uma ficha verde, mas uma das hipóteses é o fato de Clarisse ter origem russa. Pode ser um fator. Ser russo nas décadas de 1930 e 1940 era muito estranho para os governos antidemocráticos.

Ucraniana, mas criada no Brasil: Clarice se considerava mais brasileira ou mais ucraniana?
Ela era naturalizada brasileira e ficaria irada se falássemos que ela não é do Brasil. Nascida na Ucrânia, ela chegou ao país com 1 ano e dois meses. Ela, inclusive, se considerava pernambucana e tinha o sotaque de Recife. Amava o Brasil. Era uma brasileira nascida na Ucrânia.

Qual depoimento te marcou mais entre os que encontramos na obra?
O livro tem mais de 120 depoimentos, então é difícil dizer o que me marcou mais. Conversei com todo mundo que foi possível: desde aqueles que tiveram contato próximo com a Clarice, como amigos e familiares, a quem a viu apenas uma vez. Gosto muito de falar de Augusto Rodrigues, um artista plástico pernambucano. Em nossas conversas, ele me contou que Clarice gostava de visitá-lo aos domingos onde ele tinha ateliê. Augusto tinha uma rede onde ela se deitava e ficavam conversando. Uma de suas frases me marcou. Ele dizia que ela era a mestre e ele o discípulo. Apesar de ser um pouco mais velho, eles falavam sobre a vida. Outro depoimento muito marcante devido ao vínculo com Clarice é o de Maria Bonomi, artista plástica de São Paulo. Elas se conheceram em Washington: Maria com cerca de 20 anos e Clarice com algo em torno dos 40. O encontro gerou uma amizade para a vida inteira.

Teresa Montero - Divulgação - Divulgação
A pesquisadora Teresa Montero, autora de livro sobre Clarice Lispector
Imagem: Divulgação

Depois de anos de pesquisa, sua biografia soma ao legado literário da Clarice? Você se sente parte da história da autora?
No sentido de eu ser uma das pesquisadoras de sua história, sim. São muitos anos de dedicação e as coisas foram acontecendo. Não foi algo que busquei inicialmente. Eu publiquei uma biografia e podia ter parado, mas houve uma vontade da Rocco de mais material e não parei mais. Minha vida ficou totalmente ligada a dela, não tinha para onde ir. Não sei se você sabe, mas a editora foi fundada em 1975 por Paulo Rocco e Clarice deu um de seus livros, o "Quase de Verdade", que era infantil, para ele publicar. "A Hora da Estrela" não foi seu último livro. Olha que incrível. Muito se falava do lado médium de Clarice, então não me espantaria que ela tenha dado esse presente já antevendo que muitos anos depois eles publicariam sua obra.

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