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Com ação dos pais, Lara, 16, muda nome e gênero em certidão: "Renascimento"

Lara com os pais, a jornalista Mara Beatriz Mendes Magalhães e o autônomo Jânio Torres, em Fortaleza (CE), onde moram - Arquivo pessoal
Lara com os pais, a jornalista Mara Beatriz Mendes Magalhães e o autônomo Jânio Torres, em Fortaleza (CE), onde moram Imagem: Arquivo pessoal

Carlos Madeiro

Colaboração para Universa, em Maceió

08/12/2021 04h00

Aos 12 anos, Lara (que foi registrada como menino ao nascer) pesquisava na internet sobre transgeneralidade. Era o início de um processo de reconhecimento, que cinco anos depois resultou em sua mudança de nome e gênero oficialmente. Desde 2 de dezembro, ela tem seu primeiro documento — a certidão de nascimento — com o novo nome: Lara Mendes Magalhães Torres.

Lara mora em Fortaleza com os pais: o autônomo Jânio Torres e a jornalista Mara Beatriz Mendes Magalhães. Até chegar à conquista, porém, toda a família enfrentou desafios. "Foi um renascimento", diz a mãe de Lara.

A percepção de que o gênero masculino não cabia em Lara começou ainda em 2017, quando ela tinha 12 anos. A mãe conta que percebeu que o então filho fazia pesquisas sobre transgeneralidade no Google. Um dia, ao chegar em casa, ela se deparou com uma cena diferente.

"Quando cheguei do trabalho, ela estava com um batom vermelho. Eu até brinquei: 'Ué, você vai sair?' Ela disse: 'Não, acabei de chegar da escola.' Perguntei o significado desse batonzão vermelho, e ela disse que era porque se identificava", conta.

Diálogo e compreensão

Lara mostra, orgulhosa, sua nova certidão de nascimento  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Lara mostra, orgulhosa, sua nova certidão de nascimento
Imagem: Arquivo pessoal

A partir daí, mãe e filha começaram um diálogo que mudaria o curso da família. "Eu então perguntei que nome ela gostaria de ter, e ela disse: 'Mãe, você disse que, se tivesse uma outra filha e fosse menina, colocaria o nome de Lara.' Ali já fiquei super emocionada", lembra.

Apesar da emoção, saber que o filho não se identificava com o gênero masculino foi duro, admite Mara. "No começo foi um pouco difícil, não pela aceitação em si — porque eu respeito muito a questão da identidade de gênero dela. Mas isso foi em 2017, um ano muito violento aqui em Fortaleza. Teve o assassinato brutal da travesti Dandara, um caso com repercussão internacional", afirma.

O espancamento e a morte de Dandara ocorreu em fevereiro daquele ano, no bairro de Bom Jardim, e foi filmada e divulgada — o que gerou ainda mais revolta na época.

Eu tive muito medo, porque ocorreram muitos outros casos. A gente sabe que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans, e Fortaleza é proporcionalmente a que mais mata. A média de vida de uma pessoa trans é de até 35 anos, a metade da população Mara, mãe de Lara

Já o pai de Lara teve uma reação mais negativa e passou por dias difíceis. "Isso veio pelo próprio machismo estrutural: ele foi criado em uma família muito conservadora e encarou a notícia como um luto, como a perda de um filho. Ele passou a sair para beber, não se conformava. Foi um trabalho mostrar para ele que não adiantava, que a gente só estava desestabilizando a nossa filha e que já seria muito difícil para ela enfrentar essa sociedade tão preconceituosa", diz.

O marido venceu o preconceito e hoje, diz Mara, é só amor com a filha. "Foi tudo superado, com muito amor. A gente leva uma vida completamente normal: vamos à praia, ao cinema... e é essa mensagem que queremos deixar para outros pais: ter uma pessoa trans, travesti não é nenhum bicho de sete cabeças", conta a jornalista.

Renascimento com a certidão

O processo para retificação do nome e do gênero durou seis meses até a nova certidão sair. "A gente deu entrada na Defensoria em junho. A defensora do caso, inclusive, ficou muito feliz porque foi a primeira ação de adolescente aqui no Ceará", conta.

A família conversou com Universa no dia seguinte ao da busca no cartório da nova certidão de nascimento. "Foi um momento incrível! A gente considera um renascimento. Eu, ela e o pai nos emocionamos, abraçamos e choramos como se estivéssemos pegando ela no colo na primeira vez. É uma vitória, uma felicidade que não é narrável", comenta.

Orgulhosa, a mãe admite ter a esperança de que, a partir de agora, as coisas serão um pouco mais fáceis para Lara.

A gente sabe que ser travesti no Brasil não é fácil, e não é só a certidão que vai mudar isso. Mas é um passo gigantesco. Fechamos um ciclo, que nos traz a certeza de que, mesmo vivendo um momento tão crítico no país, com tantos cortes de direitos, preconceito e intolerância, houve essa conquista
Mara, mãe de Lara

Mara e o marido se emocionam com a nova certidão  - Defensoria Pública do Ceará/Dilvulgação - Defensoria Pública do Ceará/Dilvulgação
Mara e o marido se emocionam com a nova certidão
Imagem: Defensoria Pública do Ceará/Dilvulgação

'Vai abrir caminhos'

A jovem Lara também comemora o momento e acredita que sua vida vai mudar, e muito, para melhor. "Eu me sinto bem mais segura para reivindicar meu lugar como travesti nos lugares que eu vou, como pessoa do gênero feminino."

"Sinto que a mudança abre muitos caminhos para mim, tanto no meio profissional, como no acadêmico", completa a jovem, que vai entrar no 3º ano do ensino médio em 2022 e pensa em fazer faculdade de psicologia.

Ela conta que, nos cinco anos em que ainda estava com nome e gênero antigos em documentos, foi obrigada a passar por episódios constrangedores em situações rotineiras.

Na escola, durante chamada, meu nome não era respeitado e muitas vezes me chamavam pelo nome civil antigo na frente de todos os meus colegas. Eu tinha de usar o banheiro da coordenadoria da escola. Nos consultórios médicos tínhamos sempre que explicar, no cinema também, para ter direito a meia entrada
Lara Torres

Um dos episódios mais marcantes foi contado pelo UOL, em 2017, quando ela teve a matrícula barrada por uma escola de Fortaleza por ser trans. O caso também foi judicializado e teve um final feliz: a escola não só matriculou, como decidiu custear o ensino e material escolar até o final do ensino médio.

Processo previne discriminação, diz defensora

A Defensora Pública do Ceará que atuou no caso, Mariana Lobo, explica que, em 2017, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que a retificação do prenome e da identidade de gênero no registro civil pode ser feita com a autodeclaração de qualquer pessoa.

"Ou seja, bastava informar o gênero que a pessoa se declara. O CNJ [Conselho Nacional de Justiça], posteriormente, baixou uma resolução para isso ser feito em atos administrativos em todos os cartórios, só que não inclui os menores de 18 anos", diz.

Como Lara tem 16 anos, foi necessário então judicializar o caso para garantir a mudança. A defensora afirma que o caso de Lara deve servir como inspiração para pais e adolescentes entenderem que podem ter acesso a esse direito, no caso de transgeneralidade.

Eles passam por um processo de constrangimento muito forte, por isso é muito importante [mudar a certidão]. O processo previne a discriminação, e esses adolescentes precisam dessa mudança pra evitar transtorno no dia a dia. É um respeito à identidade de gênero, que é inerente a qualquer pessoa humana, independentemente se ela é maior ou menor de 18 anos.
Mariana Lobo, defensora pública