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Mulheres na vida de Marighella: mãe negra, amores militantes, neta política

Seu Jorge como Marighella e Adriana Esteves, como Clara Charf, em cena de "Marighella" que estreia nesta quinta-feira (4) - Divulgação
Seu Jorge como Marighella e Adriana Esteves, como Clara Charf, em cena de "Marighella" que estreia nesta quinta-feira (4) Imagem: Divulgação

Nathália Geraldo

De Universa

04/11/2021 04h00

Para a ditadura militar brasileira, Carlos Marighella era o "inimigo número 1". Para Maria Marighella, é o avô paterno que não conheceu e que marcou suas memórias de infância e vida em família. "Minhas primeiras palavras foram anistia, exílio", lembra.

Vereadora eleita para o mandato de 2021-2024 pelo PT (Partido dos Trabalhadores), em Salvador, Maria é uma das figuras femininas que atravessam a história do guerrilheiro —a partir desta quinta-feira (4) em cartaz nos cinemas. Ela participa da cinebiografia "Marighella" interpretando a avó, a militante comunista Elza Sento Sé.

Em cena, é ela quem chora a morte de um dos maiores representantes da luta armada dos anos 1960 contra o regime ditatorial, líder da ALN (Ação Libertadora Nacional).

Marighella foi assassinado em 4 de novembro de 1969, há exatos 52 anos, por agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). A vereadora e atriz nasceu só cinco anos depois e, embora não tenha conhecido o avô, conta que se vê ligada à data desde sempre.

Ninguém precisa estar na cena para ser atravessado irremediavelmente por ela. Sou uma pessoa que nasceu com esse marco de memória. Meu avô assassinado integrava as conversas da minha primeira infância, não havia ausência da presença dele.

Maria compreendia desde cedo os problemas sociais do país. Sabia como a família Marighella vivia sob a mira da repressão. Foi, então, para o teatro, descobrir um caminho para ela mesma. "Entendi na análise que era na cultura em que poderia ter 'meus problemas'. O teatro me salvou, subjetivamente". Participante de movimentos estudantis na juventude, Maria cresceu empunhando essa bandeira. "Me tornei gestora de cultura e me organizei como ativista desse campo".

A vida do "guerrilheiro que incendiou o mundo" chega ao público após dois anos de reveses e cancelamentos. O filme estrearia em 20 de novembro de 2019, mas a Ancine (Agência Nacional de Cinema) negou a antecipação da verba de complemento para viabilizar o lançamento. O diretor Wagner Moura classifica o episódio como censura.

"Foi na época em que editais LGBTs estavam sendo cancelados. Não era só o Marighella, era o contexto de fundamentalismo fascista de destruição de todas as formas de fomento à cultura. Um filme sobre Marighella, para um cara que dedicou um voto a Brilhante Ustra, é um problema", disse em entrevista ao TAB, do UOL. Ele se refere ao presidente Jair Bolsonaro, que citou o coronel (1932-2015) na votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016. Ustra é conhecido por ter participado de episódios de violência e torturas durante o regime militar.

Para Maria, que é amiga de Wagner e a quem apresentou a biografia do avô, escrita pelo jornalista Mário Magalhães, o filme está sendo lançado em momento oportuno.

'Marighella' representa o anúncio do que pode e deve ser um ciclo político com justiça social, e está marcado não pelo tempo de meu avô, mas pelo ciclo que vivemos no Brasil de 2013 até hoje. Aliás, sinto que estamos vivendo o ápice do golpe de 2016, mas com um projeto que não tem a mesma força que antes.

Marighella, filho de uma mulher negra

Segundo o biógrafo Mário Magalhães, o principal líder da ALN cresceu cercado de mulheres, já que tinha quatro irmãs. A mãe, no entanto, foi quem marcou mais sua trajetória. Maria Rita era uma mulher negra, nascida em maio de 1888 ——mês da assinatura da Lei Áurea no Brasil. O pai era um homem branco, operário italiano.

"Ela era filha de negros escravizados e neta de africanos escravizados. Católica fervorosa, educou o filho nos conformes do catecismo."

Maria Rita ensinou o filho a repartir o pão entre aqueles que pediam dinheiro nas ruas e, quando ele precisou escapar da perseguição policial de Salvador para o Rio de Janeiro, disse que ele havia se distanciado da igreja "por ler muita bobagem".

As ruas de Salvador também são personagens na vida de Marighella. "Ele viveu lá até as vésperas de completar 24 anos, onde a cultura negra marcou sua formação", diz Mário.

Fama de namorador e três grandes amores

adriana esteves - Divulgação - Divulgação
Adriana Esteves, como Clara Charf, no filme "Marighella"
Imagem: Divulgação

No filme, Seu Jorge interpreta um Marighella que vive uma trajetória de desencontros e despedidas. As cenas mostram abrigos clandestinos, uma noite secreta ao lado da companheira Clara Charf (Adriana Esteves) e a rotina interpelada por fugas, ações revolucionárias e produção intelectual. Havia, ainda assim, tempo para amar.

Mário conta na biografia que, na juventude, Marighella chamava a atenção das mulheres —a verve de poeta o ajudava— e "teve tantas namoradas que granjeou fama de não poder com um rabo de saia". Mas, três mulheres, militantes comunistas, podem ser consideradas os grandes amores da vida dele.

Paixão e amor eram tão vigorosos em Marighella quanto o sonho de fazer uma revolução.

"Elza é a mãe do hoje advogado Carlos Augusto Marighella [pai de Maria Marighella]. Clara Charf, que está com 96 anos, foi a grande parceira de vida de Marighella. E, de 1964 a 1969, ninguém esteve tanto ao lado dele quanto Zilda Xavier, companheira de guerrilha e de paixão", explica o jornalista.

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Clara Charf, viúva de Marighella, ao lado da neta Maria Marighella
Imagem: Divulgação/Tiago Lima

Clara, após a morte de Marighella, se exilou em Cuba e viveu com uma identidade falsa. Essa também é uma das lembranças de infância de Maria Marighella. "Quando nasci, meu pai estava preso pela 'Operação Radar', realizada na Bahia pelo Brilhante Ustra, e minha avó, exilada. Aqueles dias eram assim."

A luta em dois tempos: "MariELLE - MarighELLA"

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Wagner Moura levou placa da rua Marielle Franco para o tapete vermelho do Festival de Berlim, na divulgação de "Marighella"
Imagem: Tobias Schwarz/AFP

Tanto para os detratores quanto para os admiradores, Marielle Franco, vereadora carioca assassinada em 2018, e Marighella estão conectados. Em 2019, Wagner Moura levou uma placa com o nome de Marielle Franco para o tapete vermelho do Festival de Cinema de Berlim, durante lançamento do filme. Na ocasião, também comentou sobre como a morte dos dois os posiciona frente à violência do Estado brasileiro.

"Marighella foi assassinado em 1969. Um homem negro, revolucionário, de esquerda. Foi assassinado pelo Estado dentro de um carro. E 50 anos depois de Marighella, uma vereadora no Rio de Janeiro, também negra, de esquerda e defensora dos direitos humanos, foi assassinada dentro de um carro provavelmente também por agentes do Estado. A violência do Estado brasileiro cometida contra revolucionários nos anos 1960 é a mesma cometida nas favelas contra os negros."

Em julho deste ano, em São Paulo, o Escadão em homenagem a Marielle, em Pinheiros, e um monumento ao líder da ALN, nos Jardins, foram vandalizados no mesmo dia. Por outro lado, os muros também os reverenciam: há colagens e pichações com os dizeres "MariELLE - MarighELLA" em algumas cidades brasileiras.

"Ambos foram pessoas negras, que defenderam o socialismo e foram assassinados por causa de suas lutas. Embora Marielle tenha nascido quando Marighella já tinha sido morto, há afinidades numerosas entre as batalhas e ideais de ambos", analisa Mário Magalhães.

E as questões de gênero?

Seja nos tempos de Marighella ou nos atuais, a igualdade de gênero segue como questão circunscrita nas organizações sociais, inclusive nos partidos políticos. Conta o biógrafo, por exemplo, que o PCB (Partido Comunista Brasileiro) reproduzia internamente um "certo moralismo" ligado às mulheres da luta —tanto que a famosa escritora Patrícia Galvão, a Pagu, em 1939, foi expulsa dele por suas atitudes "de degenerada sexual".

"Mas o partido também impulsionou expressivamente a luta das mulheres. Na segunda metade da década de 1940, antes de a Justiça o banir, teve vereadoras e deputadas eleitas, quando mulheres eram raras no parlamento. A pauta do PCB na Assembleia Constituinte de 1946 abraçou causas que hoje chamamos de gênero", explica.

Em seu mandato na Câmara de Salvador, Maria Marighella vê que os espaços políticos institucionais ainda são palco para que mulheres sofram com os efeitos do machismo, da misoginia e do reforço do pensamento patriarcal.

"Estar ali é violento para nós. Eu sou uma mulher parda e sei que as companheiras trans, negras com marcações fenotípicas, estão sob situação de fragilidade ainda maior", afirma. "Marighella dizia que a democracia brasileira tem um pecado original: seu conteúdo de elite. O patriarcado tem total relação com esse conteúdo. E está no parlamento, no judiciário, nas universidades, em todos os lugares."