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Mães e filhas se ajudam na busca por aborto: 'Perde-se a vida sem apoio'

Desde 2019, 2.927 mulheres morreram porque realizaram aborto de forma clandestina no país, segundo dados do Ministério da Saúde - Getty Images/iStockphoto
Desde 2019, 2.927 mulheres morreram porque realizaram aborto de forma clandestina no país, segundo dados do Ministério da Saúde Imagem: Getty Images/iStockphoto

Luiza Souto

De Universa

29/10/2021 04h00

Mãe solo de uma criança especial e de mais duas mulheres, a engenheira civil Esther*, de 41 anos, viu-se numa agonia sem fim quando engravidou do quarto filho em agosto último: além de todo problema de saúde do caçula, de 8 anos, ela foi diagnosticada com braquicardia (ritmo cardíaco irregular ou lento) e temeu correr risco de morte com a nova gestação. Religiosa, pediu a bênção de sua mãe de santo e contou com a ajuda da filha do meio para ter acesso à interrupção da gravidez.

Do interior de Minas Gerais, Nilza*, de 42 anos, fez o mesmo pela filha mais velha: a jovem, de 25 anos, já era mãe de uma menina quando engravidou de uma pessoa com quem estava ficando, e não queria levar a gestação adiante.

"Vi minha filha entrando em grupos na internet que falavam sobre o tema, de gente que compra remédio abortivo por aplicativo de mensagem, e previ que seria um caminho muito ruim de seguir. Então comecei a pesquisar sobre lugares que pudessem ajudar a fazer o aborto de forma segura", conta Nilza*.

O Brasil autoriza o aborto em três situações: em caso de estupro, de anencefalia do feto e de risco de vida da mulher. Por causa dessas restrições, milhares de mulheres que não desejam ou não têm condições de ser mães buscam pela interrupção da gravidez de forma clandestina.

Segundo números do Ministério da Saúde, desde 2019 mais de um milhão de mulheres sofreram aborto, mais de 500 mil foram internadas por complicações ligadas a aborto inseguro e 2.927 mulheres morreram porque realizaram o procedimento de forma clandestina.

O apoio entre mãe e filha num cenário delicado como o do aborto chamou a atenção do Milhas Pela Vida das Mulheres, grupo que em dois anos já ajudou cerca de 500 pessoas a passarem pelo procedimento, dentro e fora do país, em lugares onde a interrupção da gravidez é menos restritiva. Num post recente no Instagram, o grupo contabilizou que, das 276 mulheres que buscaram o grupo somente em setembro, oito pediram ajuda para a filha e 1 para a mãe.

Universa conversou com algumas dessas mulheres sobre a importância desse apoio dentro de casa. A pedido delas, os nomes foram alterados.

"Tenho problema de saúde, filho especial e não poderia ter outra criança"

"Nasci no Paraná e cresci num lar violento. Meu pai era alcoólatra e tentou matar a minha mãe. Uma irmã ficou grávida aos 15 anos e levou uma surra da minha mãe aos 7 meses. Casei cedo, aos 18, mas me separei do pai das minhas filhas, hoje com 21 e 19 anos, pouco tempo depois.

Há 8 anos, tive um filho de forma prematura. Ele precisou fazer traqueostomia, teve duas paradas cardiorrespiratórias e ficou 45 dias no hospital. Ele tem atraso de desenvolvimento intelectual e precisa de homecare 24 horas por dia. O pai abriu mão até da visita. Minha filha do meio é quem me ajuda a cuidar do caçula desde os seus 11 anos. Ela é como se fosse mãe dele também.

Passei por muita coisa e, no meio disso tudo, minha saúde foi piorando. Tenho braquicardia [ritmo cardíaco irregular ou lento], além de enxaqueca crônica. Há dois meses, engravidei do meu atual companheiro. Por causa dos meus problemas, fiquei com medo de correr risco de vida. Ainda tive descolamento de placenta e fiquei 40 dias sangrando. Mas a médica disse que não entraria na categoria para fazer o aborto dentro do permitido.

Sentia muita dor e achei que ia morrer, porque nunca fui de ficar na cama. Foi quando falei para a minha filha do meio que não daria para seguir com a gravidez. Sou espírita, da umbanda e do candomblé, que não permite fazer o aborto. Mesmo assim, a gente pede permissão, então fui conversar com a minha mãe de santo. Também tive o apoio do meu companheiro.

Enquanto já estava sendo encaminhada para o aborto, perdi o bebê por causa do descolamento da placenta. Uma semana depois, parei num sinal e comecei a chorar porque querer ter você quer, mas as condições não permitem. É uma mistura de sentimentos muito difícil de lidar.

Sou engenheira, fiz uma obra na comunidade da Brasilândia, na zona norte, e conheci muitos casos de pai engravidando filha, meninas de 15 anos sendo mães sem querer, pai e mãe abandonando a criança. É um cenário muito triste. Quem critica o aborto nunca olha o contexto por trás daquela mulher. A pessoa tem que ter o direito de abortar. Eu nunca dependi de política, mas do meu trabalho. Sou dona do meu destino e tenho que ter direito de tomar as rédeas da minha vida."

Esther*, 41 anos

'Tenho orgulho da minha mãe'

"Minha mãe, Esther*, já tem alguns problemas de saúde e, quando descobriu que estava grávida, ficou muito mal. A preocupação era de acontecer alguma coisa com ela durante a gravidez. Fora isso, ficaria difícil criar outro filho porque nossa renda vai para os cuidados do meu irmão. Eu e minha irmã ajudamos, mas ele precisa de atenção redobrada.

Eu sou a favor do aborto em qualquer situação. Acho que as mulheres têm o direito de escolher. Gostaria muito de receber apoio se acontecer comigo. Minha mãe me contou que não queria ter o bebê. Ela disse que meu apoio foi crucial para a decisão dela."

Nicole*, 21 anos

"Tranquilizei minha filha no caminho para o aborto"

"Quando minha filha mais velha engravidou pela primeira vez aos 20 anos, ela ainda estava na faculdade e não trabalhava, então perguntei se ela queria interromper a gravidez. Mas ela estava namorando havia anos e quis ter.

Agora, aos 25, veio nova gestação, mas ela não quis ter. Ela estava solteira e decidiu tirar. Eu sugeri de cuidarmos juntas, porque ela já era mãe. Mas ela disse que estava começando um trabalho e sabia que isso iria interferir bastante. Além disso, o relacionamento com o pai da criança era recente. Meu papel foi o de tentar ajudar minha filha da melhor forma possível, para tudo ser feito com segurança.

Mulheres perdem a vida ao fazer aborto sem assistência médica, sem apoio. Não é uma coisa que se faz assim. Vi minha filha entrando em grupos na internet que falava sobre o tema, de gente que compra remédio por aplicativo de mensagem e previ que seria um caminho muito ruim de seguir. Então comecei a pesquisar sobre lugares que pudessem ajudar de forma segura.

Minha filha estava com 17 semanas quando foi para a Colômbia fazer o aborto. Lá existe mais acesso do que no Brasil [na Colômbia, permite-se interromper a gravidez, por exemplo, se houver risco à saúde mental da mãe].

Na hora de embarcar, ela sentiu um pouco de insegurança, ficou com medo de não voltar, mas eu a tranquilizei, garanti que pesquisei sobre o tema e que tinha certeza de que era o caminho mais seguro.

Minha filha ficou duas semanas na Colômbia e voltou há alguns dias. Eu não pude ir por causa das despesas. A ficha ainda está caindo. Ela acabou vendo o feto e fica lembrando, mas está se ocupando com o trabalho e aconselhei a procurar uma terapia também para ajudar a diluir a dor.

Respeito muito o momento que as pessoas vivem e, como mãe, tento ajudar da melhor forma possível. Eu também pensei em fazer um aborto quando engravidei do meu segundo filho, aos 32 anos. Eu tinha terminado um relacionamento de 10 anos e, 15 dias depois, descobri que estava grávida, mas pensei bem e vi que ia conseguir criá-lo sozinha. Fui mãe pela primeira vez aos 16 e sempre tive apoio da família, inclusive do pai, com quem me casei.

Acho que um dos motivos que levam a mulher a buscar esse caminho é o fato de ela se sentir sozinha. O país não atribui a responsabilidade da criação à outra parte. A mulher tem que se virar em todos os quesitos financeiros, de assistência médica, educacional, de tudo. Não existe uma responsabilização do homem nessas áreas, e isso pesa muito na decisão pelo aborto."

Nilza*, 42 anos

O serviço do Milhas

O Milhas acolhe mulheres em situação de gravidez indesejada. Assim que são procuradas, as ativistas encaminham e acompanham essas pessoas a exames necessários como hemograma e ultrassom.

Não necessariamente todas interrompem a gravidez, conforme explica a roteirista e diretora audiovisual Juliana Reis, fundadora do grupo. "Tem aquelas que, por questões de diagnóstico como gravidez tubária, não vão chegar até o fim da gestação ou por diversas razões preferem pagar uma clínica para interromper. Nós fazemos todo acompanhamento possível."

Desde 2019, o Milhas Pela Vida das Mulheres garantiu o aborto seguro a cerca de 500 mulheres e atendeu mais de 4 mil pessoas. Somente em 2021, das 2.166 mulheres que procuraram o Milhas para realizar um aborto, 499 eram negras, 69 menores de idade, 615 com mais de 30 anos e 710 já eram mães.

* Os nomes foram alterados a pedido das entrevistadas.