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Velório de mulher trans com gravata e cavanhaque gera revolta em Sergipe

Apesar de viver como uma mulher trans, Alana Azevedo foi enterrada como homem pela família Imagem: Arquivo Pessoal/Reprodução Redes Sociais

Maurício Businari

Colaboração para Universa, em Santos

14/10/2021 14h20

Uma mulher trans de Aracaju foi enterrada pela família como um homem, o que causou indignação a personalidades que lutam pelo movimento LGBTQIA+. Uma foto publicada por amigos nas redes sociais mostra Alana Azevedo, como é conhecida, em um caixão, na segunda-feira (11), trajando camisa, gravata e com um cavanhaque.

A imagem foi captada durante o velório realizado na manhã de segunda-feira na casa da tia de Alana, em Aracaju. À tarde, o corpo foi transportado até o cemitério de Japaratuba, um município com 18 mil habitantes, a 54 km da capital sergipana, onde ocorreu o funeral.

A denúncia foi feita pela vereadora trans Linda Brasil, que também é de Aracaju e a conhecia. Em postagem publicada no Instagram, ela considerou a atitude da família um crime de transfobia.

"Achei um verdadeiro absurdo esse desrespeito para com o que ela foi durante sua existência. Ela era engajada, batalhadora, sempre aparecia na Câmara de Vereadores para buscar soluções e ajuda para os que mais precisavam", afirmou a vereadora a Universa.

Na publicação, ela chega a citar o artigo 3º da Constituição do Estado de Sergipe, que garante "total proteção contra discriminação por motivo de raça, cor, sexo, idade, classe social, orientação sexual, deficiência física, mental ou sensorial, convicção político-ideológica, crença em manifestação religiosa, sendo os infratores passíveis de punição por lei".

Alana morava sozinha, em Santos Dummont, um bairro periférico de Aracaju, numa casa simples e em condições precárias. A mãe, que já morreu, era a única figura feminina da família com quem contava. Da família, restaram apenas o pai e um irmão.

Diretora da organização Transunides, a transexual Jéssica Taylor disse a Universa que a conhecia há muitos anos. Em dificuldades financeiras, ela pegava todo mês uma das cestas básicas distribuídas pela Casa Janaína Dutra, uma instituição de ajuda e amparo a portadores de HIV, a qual Jéssica preside.

Porém, nos últimos dois meses, Alana não compareceu para retirar os alimentos, o que levou Jéssica a desconfiar de que algo poderia ter acontecido com ela.

"Ela, que sempre foi alegre, extrovertida, parecia apática nas últimas vezes em que nos encontramos. Ela estava em depressão", acredita Jéssica. "Não é fácil sobreviver como uma mulher trans num mundo tão repleto de ódio e preconceito. Ela foi abandonada pela família e, no momento da despedida, ainda fizeram isso com ela. Impossível não se indignar", declarou.

Amigas compartilharam nas redes sociais sua indignação com o desrespeito à imagem feminina de Alana na hora da morte Imagem: Reprodução/Redes Sociais

A travesti Dani de Aracaju era amiga de Alana. As duas eram profissionais do sexo e trabalhavam à noite nas ruas da capital e sempre que podiam, se encontravam para bater papo. Ela diz que a amiga era sempre muito discreta, não gostava de maquiagem exagerada e roupas chamativas. E estava se preparando para se candidatar a um cargo político.

"Ela estava sempre com uma minissaia, um top, chinelinho, os cabelos presos e um batom bem suave. Ela era baixinha. Mas tinha um sorriso lindo e era uma pessoa muito boa", contou a Universa.

"Quando a mãe morreu, ela entrou em depressão. Ela ajudava a Alana, que morava sozinha. Penso que foi depois disso que ela foi morar com a tia. Quando a pandemia chegou, não a vi mais. Soube que estava em depressão. Eu fui até a casa da tia, para o velório, e a vi deitada no caixão, com uma camisa branca, uma gravata azul e de cavanhaque. Foi um choque para mim", revela.

Dani soube por outras amigas em comum que Alana piorou muito de saúde nas últimas semanas de vida, por conta do HIV. Já não reconhecia as pessoas e, acamada, a barba cresceu e os parentes teriam deixado assim. "Achei um desrespeito para com quem ela foi. A família é evangélica, ela foi expulsa de casa muito jovem, como eu. O pai era muito rigoroso e o irmão, extremamente religioso".

A reportagem tentou localizar a família de Alana, mas, por falta de seu nome como consta em seus documentos oficiais, não foi possível fazer contato.

Respeito póstumo na lei

A vereadora Linda Brasil conta que já protocolou um projeto na Câmara de Aracaju, nos moldes de uma lei aprovada no Distrito Federal, que estabelece o respeito à identidade de gênero durante as cerimônias de velório, sepultamento ou cremação. O texto prevê que sejam resguardadas a aparência pessoal e as vestimentas utilizadas pela pessoa trans ou travesti enquanto viva.

O projeto foi inicialmente rejeitado pela Comissão de Justiça e Redação. Após recurso e um pedido de vistas, ele volta a ser apreciado na quarta-feira (20). Na sua opinião, uma nova lei que regulamente esses casos é imprescindível para resguardar os direitos de homens e mulheres transsexuais.

"O que ocorreu foi um total desrespeito à memória de Alana. E um exemplo do que acontece com dezenas, centenas de transexuais Brasil afora. Por isso, costumo dizer que para nós, homens e mulheres trans, a morte acontece duas vezes. Porque, além da morte física, que leva a todos, ainda enfrentamos em vida a morte moral".

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