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'Após perder a perna em acidente, virei fisioterapeuta e trato amputados'

Quando criança, Jéssica sofreu um acidente e perdeu o pai e teve que amputar a perna - arquivo pessoal
Quando criança, Jéssica sofreu um acidente e perdeu o pai e teve que amputar a perna Imagem: arquivo pessoal

Jéssica Reolon, em depoimento a Ed Rodrigues

Colaboração para Universa

02/10/2021 04h00

"Sou fisioterapeuta especialista em reabilitação de amputados e modelo. Trabalho na recuperação de pessoas que, assim como eu, foram surpreendidas por uma realidade inédita e dolorosa em suas vidas. Há alguns anos, perdi meu pai e tive uma das pernas amputada por causa de um acidente. Foi difícil, mas transformei minha dor em combustível para ajudar pessoas que também passam pelo processo de amputação na adaptação a uma nova realidade.

O destino interferiu na minha história quando ainda era uma criança. No dia 28 de janeiro de 2009, aos 12 anos de idade, estávamos em uma viagem de família. Eu, meu pai, irmã, madrasta e um amigo seguíamos no sentido interior do Mato Grosso para visitar familiares em Ipiranga do Norte (cidade a 475 km de Cuiabá).

A caminhonete em que estávamos perdeu o controle após cair em um buraco e colidiu contra um poste. Ninguém se feriu com a colisão. Estávamos todos bem. Mas não vimos que o poste havia caído e deixado um fio de alta tensão sobre o veículo.

Foi no momento que começamos a descer do carro que minha vida mudou. Recebemos uma descarga de alta tensão muito forte. Eu estava sentada no banco do passageiro ao lado esquerdo. No meu movimento de saída, toquei minha perna esquerda no chão. Foi o ponto de entrada do choque.

A lesão foi tão intensa que houve a necessidade de amputação do membro para que eu pudesse sobreviver. Não havia mais sensibilidade no meu pé.

Meu pai e o amigo dele, infelizmente, não resistiram à descarga de alta tensão. Eu, minha irmã e madrasta tivemos um quadro de queimaduras de segundo, terceiro e quarto graus e ficamos alguns meses internadas em tratamento.

"Não tinha a mínima ideia de como seria minha vida"

Eu era uma criança e, a princípio, a dor mais difícil de lidar foi a morte do meu pai. Como eu ainda estava hospitalizada, em tratamento, cirurgias e mais cirurgias, remédios... Eu não tive tempo de processar o fato de eu ter perdido uma perna e de como isso mudaria a minha vida.

Estava em um momento de muitas dores, emocionais e físicas. E tudo que eu queria naquela fase era não sentir mais tanta dor e voltar a ter uma vida normal, de uma criança de 12 anos, sabe?

A partir do momento em que eu tive alta hospitalar, caiu a minha ficha. Me vi numa cadeira de rodas, sem uma das minhas pernas. Até então, parecia uma realidade paralela, daquelas que você acredita não ser real. Então, foi um choque.

Principalmente por não ter a mínima ideia de como seria a minha vida e se eu realmente teria uma vida normal depois de tudo isso.

Passei por diversas fases, foi um longo processo até aqui. Tive que aprender a lidar com o sentimento de falta, de não me reconhecer no próprio corpo, da não aceitação e da adaptação à prótese.

Durante três anos, utilizei prótese do SUS. Mas devido à necessidade de uma tecnologia mais avançada que me proporcionasse mais qualidade de vida e independência para as atividades de vida diária, busquei por uma clínica privada, que é a Conforpes, onde trabalho atualmente.

E como todo processo, apesar de doloroso, me ensinou muito. A gente vai aprendendo a se superar e a superar os desafios, a entender que sentir dor faz parte e que devemos acolher isso como algo fundamental no processo de crescimento e adaptação à nova realidade, a buscar novas possibilidades e encarar as dificuldades que vão surgindo com mais leveza.

"Virei fisioterapeuta e vejo muito de mim nas pessoas que reabilito"

*Jéssica Araujo Reolon, 25 anos, é fisioterapeuta pós-graduada em próteses, órteses e materiais especiais, e modelo. - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Jéssica é fisioterapeuta pós-graduada em próteses, órteses e materiais especiais, e modelo.
Imagem: arquivo pessoal

Eu sempre gostei da área da saúde, desde criança. Uma das minhas primeiras fantasias na época de escola, no ensino fundamental, foi um jaleco. Me imaginava trabalhando na área. E então, quando eu sofri o acidente e precisei passar pelo processo de reabilitação e adaptação à prótese, tive um contato muito grande com a fisioterapia.

Apesar de ter sido uma das fases mais difíceis, porque é um momento em que nós temos que aprender a lidar com as nossas limitações e dificuldades funcionais, eu me apaixonei e todos os caminhos me trouxeram até aqui.

Sou natural de Cuiabá, mas atuo na área de reabilitação de amputados e trabalho na empresa na qual cheguei como paciente, em São Paulo.

Vejo muito de mim nas pessoas que reabilito. Todos eles passam por boa parte de tudo que eu já passei. No início, um mundo novo se abre. Muitas dúvidas, medos... E a partir do momento em que eles passam a vivenciar uma nova realidade de possibilidades, é um renascimento. É incrível fazer parte disso.

Eu reabilito pessoas amputadas. O meu trabalho é tornar um amputado funcionalmente preparado para retornar a vida normal, inserido em sociedade de maneira ativa, exercendo seu papel como cidadão.

O paciente é avaliado, definimos a melhor tecnologia a ser utilizada, de acordo com suas necessidades funcionais e socioeconômicas, e iniciamos o processo de confecção da prótese e reabilitação.

Desde o início tive que aprender a falar sobre minha superação para outras pessoas. Eu era questionada todos os dias. Na verdade, ainda sou. A diferença é que eu não choro mais ao contar a minha história. Porque já foi superada.

No início era bem complicado lidar com os olhares, perguntas, as pessoas chorando quando eu contava... Eu realmente não sabia lidar com nada disso. Na verdade, ninguém sabe lidar com coisas do tipo. A gente aprende. E eu aprendi.

Não parei de atender nem durante a pandemia. Tomei todos os cuidados e segui todos os protocolos de combate à doença para não ter que abandoná-los nessa reabilitação, que é tão importante para eles. Estou atendendo normalmente, inclusive pacientes que sofreram amputações devido a complicações da Covid-19.

"Carreira de modelo ajudou na autoestima e aceitação da prótese"

*Jéssica Araujo Reolon, 25 anos, é fisioterapeuta pós-graduada em próteses, órteses e materiais especiais, e modelo. - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Depois de fazer fotos para um projeto da clínica onde trabalha, Jéssica também passou a trabalhar como modelo.
Imagem: arquivo pessoal

Em 2015, a clínica onde trabalho atualmente me chamou para fazer fotos para do calendário 'Movimento mais bonito'. Até então, nunca havia feito trabalhos como modelo. Depois desse trabalho, e por ter começado a postar fotos mostrando a prótese nas redes sociais, começaram a surgir outras campanhas.

A princípio foi bem difícil porque eu era extremamente tímida para isso. Foi outro processo, que também me ajudou muito na aceitação da prótese e também na autoestima.

Mas me soltei e gosto demais desse universo. Só de saber que por meio das minhas fotos eu estou ajudando alguém, faz tudo valer a pena.

Eu sofri o acidente em uma fase de transição, na pré-adolescência. Uma menina que ainda nem fazia ideia do que era autoestima de fato. Tive que aprender a construir e fortalecer a minha. Foi uma fase de muitos questionamentos, medos, mas também de muito amadurecimento.

Hoje eu enxergo a beleza como algo que transcende o físico. É importante sim cuidar da saúde do corpo, buscar ferramentas que fortaleçam a nossa autoestima, mas, para além disso, temos que cuidar da mente, do espirito, do que doamos e nos permitimos receber do outro. Aprender a se respeitar, a respeitar seu corpo, seus medos, angústias e desejos é um exercício de pratica diária.

"Não sinto que tenha limitações. Sou completamente adaptada"

*Jéssica Araujo Reolon, 25 anos, é fisioterapeuta pós-graduada em próteses, órteses e materiais especiais, e modelo. - arquivo pessoal - arquivo pessoal
"Uma prótese na perna não me impede de ser uma pessoa socialmente ativa", diz Jéssica
Imagem: arquivo pessoal

Não sinto as pessoas me tratarem como 'incapaz'. Já passei por situações de comentários constrangedores, mas aparentemente inofensivos. No início, me magoaram. No entanto, é aí que entra o exercício de fortalecer a autoestima, sabe?

Quando a gente aprende a se respeitar e a nos amar exatamente como somos, qualquer comentário, critica ou ofensa, se torna irrelevante. Qual o poder que o outro tem sobre mim, sobre o que eu sinto? Somente o que eu permito. E é isso.

Não sinto que tenha limitações. Sou completamente adaptada. Tive algumas dificuldades que são inerentes ao processo, mas a gente vai ajustando a nossa realidade e aprendendo novas maneiras de fazer o que queremos. O importante é tentar.

Atualmente, vivo uma vida agitada, trabalho bastante, frequento academia, gosto de estar em contato com a natureza, estar com amigos e família, sair, viajar? Usar uma prótese na perna não me impede de ser uma pessoa socialmente ativa.

Graças à tecnologia e aos bons profissionais, consigo ter conforto e qualidade de vida para fazer tudo aquilo que sinto vontade.

A vida é um presente e merece ser aproveitada. Todos somos um propósito, e eu realmente acredito que eu estou onde deveria estar e que tudo aconteceu como deveria acontecer. A lição é sermos melhores a cada dia, para nós e para o mundo." *Jéssica Araujo Reolon, 25 anos, é fisioterapeuta pós-graduada em próteses, órteses e materiais especiais, e modelo.