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"Cai de boca": livro mostra como as mulheres abriram espaço no funk

Tamiris Coutinho é autora do livro "Cai de boca no meu b*c3t@o - O funk como potência do empoderamento feminino" - Arquivo pessoal
Tamiris Coutinho é autora do livro "Cai de boca no meu b*c3t@o - O funk como potência do empoderamento feminino" Imagem: Arquivo pessoal

Luiza Souto

De Universa

05/08/2021 04h00

Nascida e criada em Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro, Tamiris Coutinho estava entrando na adolescência quando ouviu extasiada a funkeira Tati Quebra Barraco entoar os versos de "69 Frango Assado": ali ela estava começando a entender que a mulher pode fazer — e cantar — o que quiser, inclusive sobre a posição sexual de sua preferência.

"Por mais que não soubesse o que era aquilo que ela estava falando, consegui entender como sua voz era forte", diz a autora do recém-lançado livro "Cai de boca no meu b*c3t@o" (Ed. Claraboia) em entrevista a Universa. Hoje aos 30, a relações públicas propõe justamente debater o funk como potência do empoderamento feminino.

O título da obra, inspirada no nome de uma música de Ludmilla e interpretada por MC Rebecca e que foi tema da sua monografia de conclusão de curso na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), acabou rendendo a Tamiris ataques misóginos, incluindo o do presidente da Fundação Palmares, Sergio Camargo.

Desconhecendo que o livro fala, entre outras coisas, da cultura do funk desde a influência do miami bass e do soul para sua construção, e da disseminação do ritmo nos bailes cariocas pelas mãos do DJ Malboro e depois pelo país, Camargo escreveu em seu perfil no Twitter: "bancada pelo dinheiro público", Tamiris "produz TCC que legitima a putaria e o crime".

"Infelizmente macho escroto é macho escroto sendo negro ou periférico", resume Tamiris sobre o ataque.

No livro, na verdade, Tamiris, que recentemente fez para Universa uma análise de "Baile de Favela", música do MC João que embalou a prata da ginasta Rebeca Andrade nas Olimpíadas, analisa 32 músicas interpretadas por MCs das quatro gerações do funk feminino, de Verônica Costa a Baby Perigosa, para mostrar como as mulheres vêm evoluindo nesses espaços. Na entrevista a seguir, ela fala sobre o livro, a mudança da imagem do funk no Brasil e no mundo e sua relação com o ritmo.

UNIVERSA - Por que uma mulher falando b*c3t@o e usando a palavra na capa de um livro incomoda?
TAMIRIS COUTINHO - Porque na nossa sociedade patriarcal somos ensinados que a mulher tem que ter um padrão X, Y e Z para ser considerada uma pessoa direita, enquanto tudo para o homem é permitido, como andar sem camisa, sinonimizar a força dele através do tamanho do órgão. A mulher não pode se tocar, mostrar o corpo, falar certas palavras. Aqui no Rio a gente tem o costume de falar que "Fulano é p*ca das galáxias" para elogiar. Lembro que já usaram esse termo comigo, e respondi: "Eu sou b*c3t@na das galáxias".

Quando a gente mexe numa estrutura desse tipo, as pessoas caem matando, e foi o que aconteceu comigo

Acharam inadmissível colocar num trabalho acadêmico essa palavra sem entender por que ela está ali, que é trecho de uma música, que tinha uma relevância.

Você mostra, no livro, que as letras de funk servem como empoderamento para a mulher. Mas como enxerga as outras letras que ridicularizam e violentam a mulher?
Infelizmente o funk também reproduz essa lógica patriarcal que falei anteriormente. Há um tempo a música "Surubinha de leve" foi acusada de fomentar o estupro. Mas tem coisa mudando. Dia desses li que o MC Hariel vai lançar música com o Alok falando sobre defesa da mulher. Ótimo, mas quero ver mulher funkeira fazendo isso.

Uma das críticas ao seu trabalho veio do presidente da Fundação Palmares, o Sergio Camargo. A crítica tem um peso maior quando vem de uma pessoa negra?
Infelizmente, macho escroto é macho escroto sendo negro ou periférico. Esse homem fez uma publicação dando a entender que eu falei aquilo que ele estava colocando. Ficaria mais chateada se fosse uma crítica vinda de uma mulher funkeira e negra. Óbvio que a gente tem que aceitar crítica de todo mundo, mas é um cara que não está dentro da cultura funk, e você vê na publicação dele total misoginia e sexismo. Claro que eu queria que essas pessoas unissem as pautas, mas sabemos que não dá. Ele foi usar da posição dele para disseminar ódio sobre o funk, sobre as mulheres, e sobre mim.

Entre as ameaças que você recebeu, alguma a fez sentir medo, ou até querer mudar o tema do trabalho?
Não. Em nada abalou. Por outro lado, ficava assustada no sentido de como as pessoas se sentem no direito de falar coisas absurdas sobre as outras, e a troco de nada. Essa é a lógica do fascismo. As pessoas querem olhar para as outras e se ver como no espelho. Se olho para o outro e não me reconheço, esse outro não tem nem o direito de estar ali. E foi o que rolou.

Não ia gastar minha energia com pessoas indo no meu Instagram falar que sou um lixo, que sou uma p*ta

Fiquei mais preocupada com pessoas que saíram em defesa do meu trabalho e receberam discurso de ódio, como a minha orientadora [a professora do departamento de relações públicas da UERJ Luiza Silva], que teve o currículo remexido. Mas durante a repercussão do TCC via meu trabalho sendo reconhecido, e já estava no processo de escrever o livro.

Como foi a repercussão entre amigos e parentes?
Minha família vibra comigo. Recebi apoio de todo mundo. Me lembro de ler uma postagem falando que a minha família deveria estar com vergonha de mim. Quem escreveu isso provavelmente não tem apoio da família e acha que por eu defender algo que acredito também estaria sofrendo repressão. Pois a minha comprou meus livros e dei autógrafo.

Meu pai faleceu em janeiro por conta da covid-19 não pode ver a repercussão. Acho que com ele seria um pouco diferente porque ele era eleitor do presidente Bolsonaro (sem partido). Mas sei que ele teria me apoiado do mesmo jeito. Sempre fui livre para fazer o que achasse melhor.

Foi difícil para sua orientadora e a editora abraçarem o projeto de livro?
Em nenhum momento. Minha orientadora, no início, teve aquela recepção da maioria que não compreende o tema e pensa: "Como assim falar de funk e empoderamento feminino?". Mas ela super abraçou. E a editora também.

Recentemente, a organização do Grammy Latino adicionou o funk brasileiro na categoria Música Urbana e vimos a ginasta Rebeca Andrade levar a prata com "Baile de Favela". Como você enxerga esse momento do ritmo?
Muito importante para dar maior visibilidade. O funk é o segundo maior gênero musical ouvido do Brasil [dados do Spotify mostram que o sertanejo e o funk foram os mais tocados na plataforma em 2020], mas as críticas que o gênero sofre não condizem com a quantidade de ouvintes. Muita gente tem vergonha de dizer que escuta funk. Critica mas, no fundo, ouve.

O Grammy é importante para trazer a profissionalização do gênero. O jovem vê no funk uma via para melhorar de vida, e é importante ter esse fomento para que eles conheçam mais a história da música, tenham noção de carreira, posicionamento de marca. Acho que o prêmio trará um olhar mais crítico para MCs, produtores e DJs. Espero que os curadores tenham esse cuidado de não olhar somente para o funk da Anitta, que já está no mainstream, mas para a favela, para os produtores independentes.

Como o funk apareceu na sua vida?
Foi acontecendo naturalmente. Lembro que meu primeiro contato como ouvinte foi num aniversário, de repente de 10 anos. Estava gravando com minha mãe uma fita K7 para tocar na festa e ouvi "É som de preto" na rádio. Também tenho muita lembrança de ouvir a Tati Quebra Barraco cantando "69 Frango assado", e por mais que não soubesse o que era aquilo que ela estava falando, consegui entender como sua voz era forte. Toda festa tinha funk, e isso foi fazendo parte da minha construção como funkeira.

Na faculdade, tive contato mais profissional e acadêmico, quando minha turma na UERJ fez o evento Liberta, DJ!, para debater o funk sob vários aspectos com nomes importantíssimos como DJ Malboro e MC Sabrina. Fiquei encantada e percebi que aquilo iria fazer parte do meu TCC.

Em algum momento você já foi repreendida ou teve vergonha de reproduzir certas letras de funk?
Não. A minha família não é funkeira, mas a gente sempre foi muito festeiro. Nunca tivemos problema com repressão por ouvir ou cantar.

Além dessas críticas ao trabalho, você já sofreu algum outro tipo de violência de gênero?
Impossível encontrar mulher que não sofra no dia a dia com o machismo. Hoje mesmo vim para o trabalho toda coberta por causa do frio e o cara me gritando do carro, chamando de "delícia". Não é pela roupa, é o fato de você ser mulher, passar por macho escroto e sofrer esse tipo de coisa, mas nunca fui abusada ou sofri qualquer coisa maior e traumática como muitas sofrem.

"Cai de boca no meu b*c3t@o" - Tamiris Coutinho

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