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"Sofri quatro abusos sexuais e hoje ajudo jovens a não passarem pelo mesmo"

Gisley Alves Cruz, 35, vive em Timon, no Maranhão - Arquivo pessoal
Gisley Alves Cruz, 35, vive em Timon, no Maranhão Imagem: Arquivo pessoal

Gisley Alves Cruz, em depoimento a André Aram

Colaboração para Universa

21/07/2021 04h00

Meu nome é Gisley Alves Cruz, tenho 35 anos e sofri quatro abusos sexuais, um deles uma tentativa de estupro coletivo —parece ser uma sina que carrego. Minha infância foi muito difícil, passei muita fome, minha mãe e meu padrasto não trabalhavam, me batiam, às vezes, me expulsavam de casa e eu dormia sob plásticos.

Ela nunca me deu carinho, houve aniversários que ela nem me deu parabéns, fingia esquecer ou esquecia mesmo.

Aos 10 anos, ela me colocou tipo numa associação de moradores, lá tinha cursos de crochê e outras coisas e várias meninas iam para lá. Uma vez, uma colega me chamou para ir à casa do pai dela com outras 2 ou 3 meninas, lembro que ele nos tocava, levava para o quarto uma por vez e abusava, depois dava um pacote de biscoito. Até hoje sinto o cheiro dele, me dá nojo, e eu não conseguia contar pra ninguém.

Lembro que eu tomava muitos banhos quando chegava em casa, não conseguia entender se aquilo era certo ou errado, não contei a ninguém porque as pessoas não iam acreditar. Sofri outras tentativas, havia um vizinho que mostrava a genitália para mim, me perseguia e uma vez, aos 12 anos, ele quase me agarrou na rua.

Saí do Maranhão e fui para Fortaleza com 17 anos, onde trabalhei como garçonete. Aprendi inglês e italiano e, aos 18, conheci um sueco e fui morar com ele lá. A vida não era ruim e a relação durou quase três anos, mas ele era muito possessivo, não me deixava sair de casa, vivia quase em cárcere privado. Ele era atirador de elite e uma vez me disse que se eu morresse ali ninguém iria saber. Senti aquilo como uma ameaça, inventei que precisava visitar meus pais doentes no Brasil e nunca mais voltei.

Já vivendo aqui de novo, fui a uma festa na casa de amigos. Ao ir embora peguei carona com um colega, no caminho entraram mais três desconhecidos no carro e queriam abusar de mim. Gritei, me defendi, levei um soco no olho e me jogaram para fora do carro. Tentei fazer um boletim de ocorrência, mas não havia policial na hora. Um deles é filho de um homem influente da cidade, não sei se puseram algo na bebida, pois estava desorientada.

Tenho depressão e ansiedade, superei três tentativas de suicídio e há dois anos contei para a minha mãe sobre os abusos do passado. Ela apenas disse: 'Foi mesmo?', e logo mudou de assunto. Aquilo me doeu demais. Há sete anos oriento crianças e adolescentes sobre abuso sexual, faço isso em qualquer lugar: escolas, praças do bairro, onde tenha jovens reunidos, me aproximo, converso usando a linguagem deles, em que oriento a não aceitar certos toques, a não se calar e instruo as mães a denunciar, a ensinar aos filhos onde pode e não tocar, estar sempre em alerta, observar o comportamento deles, para que não cresçam com traumas. Tento conseguir psicóloga, informar sobre leis, mas é difícil sem apoio governamental.

Já recebi ameaças e intimidações, ainda mais quando não se tem apoio da família da vítima, em muitos casos os pais fecham os olhos.

Sou como uma conselheira, dou meu depoimento, acredito que já tenha ajudado muitos jovens, deixo meu contato com eles, muitas vezes eles me procuram depois para conversar e contam coisas pesadas. Antes eu não suportava ouvir sobre o assunto, mas vi que precisava fazer algo, queria poder fazer mais, queria ter recursos, mas infelizmente não tenho.

As pessoas daqui acham normal uma menina de 12 anos grávida. Para mim, isso vem de um abuso, falta de esclarecimento, planejamento familiar, desestruturação familiar, e aqui praticamente é normal isso. Sempre digo aos jovens para não pular as fases da vida, o ser humano precisa ter essas fases infância e adolescência, eu não tive, roubaram as minhas.

Eu percebo no olhar quando uma criança foi abusada.

Há três anos fui estuprada por um motorista de aplicativo, e não denunciei porque me senti culpada. Havia bebido álcool antes e até hoje me sinto culpada, sendo que eu sou a vítima, mas esse é o pensamento de quem é abusado, você acha que fez algo de errado pra aquilo acontecer e se pergunta: 'Por que deixei isso acontecer? Por que não gritei? Por que não contei?'. A sociedade te julga e te condena, talvez por isso as pessoas têm receio de contar. Após isso engordei 32 kg, não me cuido mais e me sinto feia.

Tenho dois filhos (9 e 7 anos) e ambos são autistas. Trabalhava como garçonete, mas tive que parar para cuidar deles. Antes da pandemia, eu os deixava na escola, fazia quentinha e saia vendendo nas ruas, mas agora não tem como, não tenho ninguém para cuidar deles. Eu gostaria de estar trabalhando, amo trabalhar, mas nem minha mãe quer cuidar deles. Ser mãe de autista é uma montanha-russa, muitos desafios, muitos preconceitos, ainda mais quando se luta sozinha. Eu vivo para eles.

Sobrevivo com um salário mínimo, o pai deles não dá pensão, embora esteja na Justiça. Peço a amigos, nos CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), prefeitura, vou aonde for quando necessito de algo. Muitas vezes sou humilhada e julgada por não conhecerem a minha história. Sonho um dia ter um abrigo para mulheres e crianças vítimas de abuso sexual e agressão doméstica, sonho ter uma vida digna. Superar tudo que vivi na infância é impossível, aprendi a conviver com o passado, pois são coisas que nunca irei esquecer. O que mais me entristece é saber que muitas vezes nós mulheres não somos respeitadas e valorizadas."