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'Após quase desistir de viver, fiz da minha luta contra esclerose um livro'

"Estar viva é uma dádiva", diz Marina, autora do livro "De repente esclerosei" - Arquivo pessoal
"Estar viva é uma dádiva", diz Marina, autora do livro "De repente esclerosei" Imagem: Arquivo pessoal

Marina Mafra em depoimento à Júlia Flores

De Universa

18/07/2021 04h00

"Descobri a esclerose múltipla há 9 anos. Na época não existia muita informação a respeito da doença e foi assustador.

Comecei a sentir formigamento nas pernas, que depois começaram a ficar mais pesadas, e em seguida veio a perda de equilíbrio. Não parava em pé sozinha. Fui ao hospital, fiz uma bateria de exames e recebi o diagnóstico da esclerose múltipla depois de ter ficado quase um ano sob observação médica.

Foi traumático e, durante um tempo, tentei viver como se eu não fosse portadora da doença. Pensava que se não tocasse no assunto, ela não existiria. Ninguém sabia como conversar comigo, como me abordar - e eu estava sofrendo.

Até que um dia meu marido, o José, falou pra mim: "Se você não consegue falar, tenta escrever para a gente saber como você está, sem ter que ficar te perguntando". Foi ali que eu comecei a usar a literatura a meu favor.

"No começo, falar da doença me fazia mal"

Marina Mafra tem 32 anos e foi diagnosticada com esclerose múltipla aos 23 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Marina Mafra tem 32 anos e foi diagnosticada com esclerose múltipla aos 23
Imagem: Arquivo pessoal

Criei o meu primeiro blog em 2015, o 'Diário da Esclerosada'. Na época, ainda estava aprendendo a viver com a doença e falar sobre ela era doloroso. Decidi abandonar o projeto meses depois.

Com as complicações da esclerose, também tive que abandonar o meu trabalho - eu era bancária - e mergulhei nos livros. Eu tinha medo de ter problemas de memória por causa da doença, então criei o blog "Resenhando por Marina" em 2015 para anotar minhas percepções sobre cada história.

Em 2018, comecei a sentir falta de desabafar sobre o meu dia a dia. Criei o "Senhora Múltipla" para voltar a falar sobre a doença e não parei depois dali. Em 2021 lancei meu primeiro livro, o "De repente esclerosei", que conta a vida de uma jovem lidando com o diagnóstico da doença.

Percebi que não existiam histórias com personagens de esclerose e resolvi escrever a respeito

Como eu nunca tinha escrito nada, contei com ajuda técnica de seguidores e a obra nasceu. Não é uma biografia, porque a personagem não é inspirada em mim - a única parte que é "autobiográfica" é quando ela recebe o diagnóstico, queria mostrar para os meus amigos e familiares o que senti quando descobri a doença. O resto é ficção.

O meu próprio conto de fadas

"De repente esclerosei" conta a história de Mitali, uma jovem que recebe o diagnóstico da esclerose no início da vida adulta. Ela trabalha em uma livraria e é lá que conhece Dimitri, com quem a personagem vive um romance.

Muita gente acha que eu me inspirei na minha própria história com o José para escrever o livro. Poderia, mas não é bem assim. Estou junto do meu marido desde que tinha 13 anos e ele, 15; nós nos conhecemos na Igreja. Desde aquela época eu sabia que ele é o amor da minha vida.

Marina conheceu José quando ela tinha 13 e ele, 15. Desde então, não se desgrudaram mais - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Marina conheceu José quando ela tinha 13 e ele, 15. Desde então, não se desgrudaram mais
Imagem: Arquivo pessoal

Quando eu recebi o diagnóstico, ele estava comigo. Foi bastante assustador para ambos, porque achávamos que eu podia morrer a qualquer momento. Mas ele não transmitiu isso para mim, nunca demonstrou fraqueza, pelo contrário, ele pesquisou sobre a doença e me ajudou a entende-la.

Estamos casados há mais de 11 anos e até hoje ele cuida de mim. Estou há dois meses sem andar. É a segunda vez que perco os movimentos da perna em uma crise; sem o José, não faria nada. É ele quem me ajuda a tomar banho, limpa a casa, prepara a comida, deixa o quarto pronto com as coisas por perto — inclusive as fraldas (tenho incontinência urinária). E ainda é meu maior apoio psicológico.

Tem momentos que a positividade vai embora, e é no colo do meu marido que eu choro

Marina e o marido José com os dois cachorros do casal - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Marina e o marido José com os dois cachorros do casal
Imagem: Arquivo pessoal

Ele nunca demonstrou nada, mas sinto que ele entrou em pânico no dia que acordei sem mexer as pernas pela primeira vez. Agora, ele está mais acostumado com a doença e não perdemos tempo com o medo, mas sim procurando soluções.

No momento, a gente não pensa em aumentar a família. Moramos eu, ele e nossos cachorros em um sobrado no Tatuapé, em São Paulo. Eu cheguei a engravidar em 2014, mas perdi o filho no começo da gestação e dali em diante não tentamos novamente. Temos uma rotina complexa por causa da esclerose e uma criança demandaria cuidado. Quando estou na rua com meus afilhados, e eles correm para longe de mim, penso: "Se eu tivesse um filho, ele sairia correndo e nunca mais o veria".

"Só queria que minha vida fosse mais fácil"

Livro "De repente esclerosei", de Marina Mafra - Editora Martin Claret - Editora Martin Claret
Livro "De repente esclerosei", de Marina Mafra
Imagem: Editora Martin Claret

Acaba tendo um pouco de mim na história do livro, é claro, mas ele é uma obra de ficção. 'De repente escloresei, um faz de conta de verdade' deu certo e as pessoas acabaram gostando bastante da história. Primeiro eu publiquei o livro físico de forma independente, e depois recebi o apoio de uma editora.

Acho que, de uma maneira geral, o livro instiga a gente a enxergar a vida como um presente. Estar viva é uma dádiva. O livro foi um memorial para o meu pai, porque ele morreu de câncer enquanto estava escrevendo a obra.

Não tenho medo de que meus sintomas piorem. Hoje acredito que tudo o que acontece é por um bem, tudo que vier é para evoluir. Não tenho medo de nada, e falo isso sinceramente. Durante muito tempo, o medo me travou, me bloqueou. Já passei por fases depressivas e quis desistir de tudo, mas escolhi ver a vida de um jeito diferente.

Uma dessas crises depressivas aconteceu há um mês, quando vi que todos meus esforços para voltar a andar não adiantavam; no ápice da ansiedade, tive uma crise de pânico e tudo explodiu. Vi que não tinha controle de nada e optei por viver um dia de cada vez. A doença exige essa tranquilidade.

A depressão chega muito fácil, e durante muito tempo estive deprimida, e não quero que isso aconteça de novo. Hoje faço terapia e tomo remédios para controlar a ansiedade

Sinto que tenho um prazo de validade, porque me canso rapidamente. Não consigo ficar em passeios por muito tempo, não posso trabalhar, não gosto de barulho, é difícil viver socialmente. A gente não conseguir controlar o corpo é assustador. A cada dia posso acordar com um novo sintoma.

Meu maior sonho hoje é reformar o sobrado onde moramos, transformar ele em um lugar completamente adaptado para uma pessoa com deficiência. Meu quarto fica no segundo andar, e por isso só desço as escadas quando preciso ir ao médico. Passo o dia trancada, mas não acho isso ruim, porque tenho meus livros e escrevo na maior parte do tempo. Com a publicação do "De repente esclerosei", passei a receber convites para escrever outras coisas.

A longo prazo planejo ter uma vida de viajante. Queria ir para as Maldivas, mas fico pensando em como seria chegar lá de cadeira de rodas. Hoje a minha vontade de desbravar o mundo é, na verdade, uma vontade descobrir e escrever sobre os desafios que uma deficiente enfrenta nesses lugares. Viver em sociedade é difícil, nem as ruas facilitam. Só queria que minha vida fosse mais fácil." Marina Giceli Mafra Martinez, 32 anos, escritora, mora em São Paulo - SP