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Diretora de documentário sobre Elize Matsunaga: "Tinha uma relação tóxica"

Camila Brandalise

De Universa

05/07/2021 08h00

A auxiliar de enfermagem Elize Matsunaga foi condenada, em 2016, a 19 anos e 11 meses pelo assassinato e esquartejamento do marido, Marcos Kitano Matsunaga, presidente e herdeiro da Yoki, cometido quatro anos antes. Desde então, sua versão da história apareceu apenas por meio da confissão do crime feita às autoridades. Agora, pela primeira vez, ela decidiu abrir seu passado para uma grande audiência: no dia 8 de julho, estreia na Netflix a série documental "Elize Matsunaga: Era Uma Vez Um Crime".

Dirigido por Eliza Capai e com uma equipe majoritariamente feminina, a produção traz, em seus quatro episódios, a discussão sobre o machismo que rodeou o julgamento — desde o fato de relembrarem o passado dela como garota de programa às constantes descrições físicas da ré. Também questiona por que o caso de uma mulher que matou o marido ganhou os holofotes em um país onde ocorrem pelo menos oito feminicídios por dia, que mal são noticiados.

Marcos e Elize Matsunaga: casal tinha coleção de armas, que eram usadas em caças - Divulgação - Divulgação
Marcos e Elize Matsunaga: casal tinha coleção de armas, que eram usadas em caças
Imagem: Divulgação

Entre as falas de Elize, há relatos de violência psicológica por parte do marido, que teria a chamado de "lixo", "puta" e "louca" quando questionado sobre ter uma amante. Há, também, depoimentos de advogados, promotor do caso e amigos de Marcos dizendo que essa foi uma versão inventada pela ré para diminuir sua pena, que matou o marido por vingança e dinheiro. Em relação ao crime em si, Elize diz não saber exatamente o que sentiu, em um misto de raiva e medo, no ímpeto que a levou a matar o marido. Também aborda o desejo de reencontrar a filha, a quem pretende pedir perdão.

Universa assistiu à série em primeira mão e entrevistou a diretora que, na conversa abaixo, fala mais sobre o documentário. "Abordar o machismo não tem a ver com justificar o crime. O assassinato é inaceitável. Mas esse caso é fora da curva, estamos falando de uma inversão: aqui, é a esposa que mata o marido", diz Capai.

Julgamento de Elize Matsunaga ocorreu em 2016 - Reprodução - Reprodução
Julgamento ocorreu em 2016
Imagem: Reprodução

UNIVERSA - Você passou dias acompanhando a rotina de Elize em uma "saidinha" e gravou uma entrevista de horas com ela. Que mulher viu na sua frente?
ELIZA CAPAI - Senti ela com muita vontade de contar essa história da melhor forma que pudesse e com muita confiança. Tudo que a gente pedia, ela se prontificava a fazer. Filmamos ela tomando banho, cozinhando, ela ia aceitando. Elize estava muito disposta a contar essa versão e colaborar para que a série fosse a melhor possível. Foi um longo processo de negociação para conseguir a entrevista. E a gente se esforçou muito para construir um ambiente que a deixasse à vontade.

Uma das coisas que solicitei foi que a equipe que acompanhasse fosse totalmente feminina. Ela abre para a gente coisas muito íntimas, e isso não teria acontecido se a equipe não fosse formada por mulheres muito sensíveis.

Pensando que é uma mulher que está presa em uma prisão feminina, achei que seria um tanto agressivo ter homens na equipe, que isso travaria a espontaneidade e algumas situações.

Em quais situações do caso Elize houve machismo?
Abordar o machismo no caso da Elize não tem a ver com justificar o crime. O assassinato é inaceitável, lamentável. Mas é importante observar por que esse caso, especificamente, ficou célebre. O que acontece no Brasil? Homens é que matam esposas. Então a gente está falando da inversão: a mulher mata o marido milionário. Acho que essa história traz dois pontos. Um é o julgamento midiático que existiu.

Elize saiu em capa de revista, boa parte fala dela ter trabalhado como garota de programa, ela virou 'a prostituta'. E até hoje matérias se referem a ela como ex-prostituta, é o que a mídia destaca quando vai falar dela.

Outra coisa é que ao mesmo tempo em que Elize era julgada de forma muito sexista, a vítima do crime também foi tratada de forma sensacionalista. Foi usado contra ele o mesmo artifício que se usa contra vítimas de feminicídio: ir ao passado da pessoa, buscar as coisas que mais manchem aquela trajetória [o documentário mostra que Marcos Matsunaga costumava sair com prostitutas e teria participado de um fórum de discussão online para dar notas a elas]. Esse crime trabalha com dois lugares do machismo, e um deles é o invertido, quando se aplica ao homem o julgamento para as vítimas mulheres. Dá um nó na cabeça.


Há vários relatos, além dos da Elize, dizendo que Marcos era abusivo. Outros afirmam que esse foi um argumento para atenuar a pena dela. O que realmente aconteceu?
É sempre muito complicado julgar uma relação quando só têm um lado. A partir dos relatos dela, fica claro que havia uma relação tóxica. Muitas relações que terminam em feminicídio são tóxicas, há uma parte abusando da outra. Mas em outros casos, os dois lados começam a se violentar, mas como um lado, do homem, tem mais força que o outro, vem a violência, agressão e até morte. Então existia uma relação tóxica com algo que torna isso altamente perigoso, que é a posse de arma [o casal tinha armas em casa, e Elize usou uma delas para matar Marcos]. O que poderia ser um grande bate boca, uma louça voando, porta batendo, alguém surrando um armário, se transforma no tiro. E aí não tem como falar: 'nossa, desculpa, me exaltei'.

elize matsunaga - Divulgação - Divulgação
Documentário traz primeira entrevista da auxiliar de enfermagem
Imagem: Divulgação

O que seria diferente se o crime tivesse acontecido nos dias de hoje?
Os debates seriam em outros lugares. Não sei quais, mas acho que haveria uma diferença. Fico pensando como o casal teria reagido com todas aquelas brigas, com a relação tóxica que se desenvolveu. Será que, hoje, teriam outras ferramentas para ver que a violência entre eles estava escalonando? Essa consciência social começou a surgir depois que as mulheres pautaram o debate público. A Lei Maria da Penha também colocou o assunto na agenda pública.

Que diferença pode fazer uma diretora mulher dirigindo uma série criminal?
As séries de 'true crime' têm uma linguagem muito masculina, no sentido de estar ligado ao universo masculino. É fálico, tem arma, violência. Questionei: 'como podemos fazer essa de uma maneira feminina?'. Uma das coisas, por exemplo, é ter um roteiro não-linear, mas circular, que remete mais ao feminino. Nossa preocupação era como a gente fala sobre esse crime tentando entender a motivação da personagem, que é uma mulher, a partir da visão dela. Mas também com outras visões muito diferentes, de familiares, amigos do Marcos. Ou seja, tentando entender de uma forma plural. Tem mais uma coisa que se diferencia de outras séries: a gente já sabe quem matou a vítima. O ponto não é esse, mas mostrar por que isso ocorreu. E depois que ocorre, como essa pessoa é ressocializada? Nesse caso específico, só tem vítima, ninguém saiu melhor nessa história. É uma tragédia, [desde o início.

Você fez outros documentários, inclusive premiados, com narrativas sobre mulheres. A série sobre a Elize é um seguimento de um trabalho que você já vem desenvolvendo?
Nos trabalhos que fiz anteriormente, as mulheres eram vítimas de uma ação. Meu primeiro longa é "Tão Longe Daqui", de 2013, uma narrativa pessoal que se desenvolve a partir de uma viagem por diferentes países da África, conversando com mulheres, tentando entender lugar delas em seus contextos. O segundo foi "O Jabuti e a Anta", de 2018, foi sobre obras hidrelétricas na região da floresta Amazônica. Depois que gravei vi que a maioria das personagens eram mulheres. Por fim, meu último longo, "Espero Tua Revolta", de 2019, é sobre o movimento estudantil de ocupação de escolas. Dos três personagens, duas são mulheres, e vem o feminismo com recorte racial como uma questão muito forte. Então são vítimas de projetos hidrelétricos, ou de um sistema de educação sucateado. Com a Elize, foi a primeira vez que eu lidei com o algoz da situação. Mas ouvindo com empatia, para não julgá-la. Falar sobre mulheres é minha forma de ver o mundo, de corrigir uma injustiça, já que a maioria das obras são feitas por homens.