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"Não dar lugar a cientista mulher é desperdiçar metade de cérebros do país"

A professora da UnB (Universidade de Brasília) Mercedes Bustamante foi eleita para a Academia de Ciências dos EUA - Divulgação/UnB
A professora da UnB (Universidade de Brasília) Mercedes Bustamante foi eleita para a Academia de Ciências dos EUA Imagem: Divulgação/UnB

Ed Rodrigues

Colaboração para Universa

12/06/2021 04h00

Professora do departamento de ecologia do Instituto de Ciências Biológicas da UnB (Universidade de Brasília) e uma das maiores autoridades no país em mudanças climáticas, Mercedes Bustamante foi eleita para a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos.

A instituição é uma sociedade privada sem fins lucrativos, formada por estudiosos ilustres, estabelecida em 1863 pelo então presidente norte-americano, Abraham Lincoln. Por lá já passaram cerca de 190 cientistas que receberam o Prêmio Nobel. Anualmente, podem ser eleitos 120 membros, no máximo — sendo apenas 30 cidadãos não americanos.

Na lista de 2020 do site Web of Science com o nome dos pesquisadores mais citados em trabalhos científicos no mundo, Bustamante está entre os 18 brasileiros que aparecem no ranking — foi mencionada entre mais de sete mil cientistas de mais de 60 países. Embora seja dona de um extenso currículo que acumulou ao longo de seus 28 anos na área científica, a pesquisadora diz que não esperava ser escolhida para integrar a entidade americana.

"Foi realmente uma surpresa. A eleição também considera o conjunto de trabalhos desenvolvidos ao longo da carreira. A academia deve ter considerado a atuação em pesquisas sobre as mudanças ambientais em ecossistemas tropicais como o Cerrado e Amazônia", diz ela, que é referência no bioma Cerrado, a Universa.

Para a professora, em um momento em que há cortes de recursos para pesquisas e campanhas de negacionismo científico no Brasil, sua eleição mostra que o conhecimento dos cientistas brasileiros tem reconhecimento internacional. "Todos os projetos que conduzi e trabalhos que publiquei contaram sempre com muitos colaboradores, de diversas instituições. Por isso, considero que o reconhecimento é para a comunidade científica brasileira, em especial para os pesquisadores que atuam na área de ciências ambientais."

A cientista diz que a educação é a resposta à disseminação de fake news durante a pandemia de covid-19. "Há, sem dúvida, ações coordenados que apoiam o negacionismo no Brasil e em outros países, mas ainda há confiança na ciência. No entanto, é preciso ampliar os esforços de educação e comunicação científica em todos os níveis. A escola é central nesse esforço. As crianças são curiosas por natureza e a curiosidade é o combustível da ciência. A educação, dentro e fora da escola, deve estimular essa curiosidade e desenvolver o senso crítico."

"País não pode ser dar ao luxo de não aproveitar nossa capacidade intelectual"

Em meio à alegria de ter todo um trabalho sério reconhecido, Mercedes Bustamante lembra que ainda é preciso ter mais mulheres em outros níveis da ciência. A docente aponta que as mulheres brasileiras, por exemplo, somam metade da população do país. E que esse intelecto tem que ser mais aproveitado.

"Como em todos os campos, a participação das mulheres na ciência também deve ser estimulada e ampliada. Já somos a maioria nos cursos de graduação das universidades. No entanto, é preciso avançar com a participação das mulheres nos níveis mais avançados da carreira científica", afirma.

Diversidade na ciência amplia as abordagens e as visões e com isso podemos trabalhar novas soluções. Toda a sociedade é beneficiada com a igualdade de gênero. No caso da ciência, não abrir espaços para as mulheres é desperdiçar metade de nossos cérebros e o país não pode se dar um luxo de não aproveitar todo esse potencial.

Um potencial, acrescenta a docente, que tem ajudado também no combate à pandemia. "É um trabalho não só de cientistas e médicas, mas também enfermeiras, auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas e muitas outras mulheres. Há um predomínio feminino nas profissões que envolvem o cuidado de pessoas e muito importante que isso seja destacado e valorizado."

A cientista avalia que, embora o Brasil ainda padeça da epidemia da violência de gênero, houve avanços importantes nesse sentido. Ela diz que no meio acadêmico esses avanços também se fizeram notar com maior representatividade de mulheres em comitês, em academias científicas, como palestrantes em eventos científicos e com o reconhecimento da licença-maternidade no currículo Lattes do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

"No entanto, há ainda comportamentos arraigados em algumas situações que aparecem como interrupções de falas, desconsiderações de posições técnicas, subestimação da capacidade de trabalho."

Sobre as remunerações e possíveis diferenças nos valores para cientistas homens e mulheres, ela diz que na academia existe uma equiparação. Mas há mais a se fazer. As diferenças podem estar nas oportunidades e nas condições para que jovens pesquisadoras e mães consigam equilibrar de forma satisfatória as duas atuações", fala.

"Precisamos de uma nova geração de cientistas que ajude o país a enfrentar os grandes desafios ambientais das próximas décadas. A ciência deve oferecer à sociedade brasileira não só um quadro claro e acurado desses desafios, mas também um leque de opções que combinem justiça social e ambiental."