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"O que fizemos com o Brasil? País está doente", diz autor de "Torto Arado"

Ganhador do Prêmio Jabuti, Itamar Vieira Junior, 41, lança livro de contos em que personagens femininas ganham protagonismo - Adenor Gondim/Divulgação
Ganhador do Prêmio Jabuti, Itamar Vieira Junior, 41, lança livro de contos em que personagens femininas ganham protagonismo Imagem: Adenor Gondim/Divulgação

Maria Luísa Barsanelli

Colaboração para Universa

08/06/2021 04h00

Antes do sucesso de "Torto Arado" (ed. Todavia), Itamar Vieira Junior já havia lançado dois livros de contos. Mas de maneira artesanal, com pouca distribuição. Parte desses contos agora se soma a outros inéditos, escritos "num Brasil diferente, que a gente tem visto com muito espanto", diz o autor, 41.

Esse conjunto está em "Doramar ou a Odisseia" (ed. Todavia), coletânea que chega às livrarias nesta terça (8) reunindo temas caros ao escritor baiano, como a questão fundiária, sujeitos marginalizados e um protagonismo feminino. "O mundo que me foi destinado pela história do homem não é um mundo muito agradável."

Há a história de Alma, uma mulher que foge da condição de escrava e vaga pelo sertão; a de uma refugiada que anseia pelo reencontro com o marido de quem se perdeu no mar; a trajetória vertiginosa de Doramar em meio à violência urbana; a narrativa a um só fôlego de "Manto da Apresentação", que recria o pensamento do artista Arthur Bispo do Rosário (1909-1989).

"Doramar ou a Odisseia" reúne contos do baiano Itamar Vieira Junior - Divulgação/Todavia - Divulgação/Todavia
Itamar diz que ao escrever sob o ponto de vista feminino, consegue enxergar
Imagem: Divulgação/Todavia

Itamar conversou por telefone com Universa sobre o novo livro, as mudanças no mercado editorial, seu trabalho como geógrafo — é funcionário do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reformas Agrária) há uma década — e o sucesso de "Torto Arado". O livro venceu os principais prêmios literários do país, vendeu mais de 165 mil cópias e deve ganhar uma adaptação para o audiovisual — há um ano, o cineasta Heitor Dhalia adquiriu os direitos da obra.

Na entrevista a seguir, o autor também conta que já está escrevendo seu próximo romance — uma história sobre uma comunidade que vive em torno de um mosteiro do século 17, construído por trabalhadores escravizados, no litoral da Bahia.

UNIVERSA - Como foi pensar "Doramar ou a Odisseia" depois da repercussão de "Torto Arado"?

Itamar Vieira Junior - Uma parte desses contos foi publicada em 2017 de uma forma muito artesanal, com pouca distribuição. Depois de "Torto Arado", eu fui provocado a escrever outros contos. Confesso que eu tento dissociar: "Torto Arado" é "Torto Arado", meu trabalho como escritor continua. Acho que muitos escritores gostariam de ver um livro tão vendido como esse, mas se preocupariam de o livro se tornar uma sombra para o autor. Em nenhum momento isso passa pela minha cabeça, porque eu tenho muita clareza em relação ao que eu escrevo. Minha expectativa agora é de que os contos possam encontrar os leitores de "Torto Arado" também.

De que forma você foi provocado a escrever essas novas histórias?

Elas foram escritas num Brasil diferente, um Brasil que a gente tem visto com muito espanto e se perguntado: o que fizemos com este país? Algumas narrativas carregam um pouco desse fardo sombrio.

Como "O Que Queima", em que um casal compra uma casa, mas coisas estranhas começam a acontecer. O Brasil parece um país que está adoecendo. De alguma forma esses temas se impõem. Não apenas pelo presente, mas para que a gente possa pensar na nossa história através do tempo, ter uma visão mais ampla, reflexiva.

Você dedica o livro às mulheres que passaram pela sua vida e muitos dos contos trazem um protagonismo feminino. Como é narrar desse ponto de vista?

Às vezes eu assumo essa perspectiva da personagem mulher, ela aparece muito nos meus escritos. Isso tem uma série de razões. Há uma certa reverência a essas mulheres que fizeram parte da minha vida desde a infância. Eu via aquelas mulheres sofridas, às vezes maltratadas pela vida, mas delas emanava uma força tão grande.

Talvez essa força do feminino seja importante para que eu conte histórias, possa me deslocar para esses lugares e imaginar o mundo de uma outra forma. Porque o mundo que me foi destinado pela história do homem não é um mundo muito agradável.

Como você vê esse movimento recente de buscar mais espaço para autores não brancos?

A gente viveu uma pequena mudança que começou há duas décadas, com o sistema de cotas e a inclusão social de pessoas que viviam à margem. Essas pessoas ganharam consciência e demandam por histórias, por arte que se aproximem de suas vivências. A gente tem uma diversidade na nossa literatura contemporânea, ainda pequena, mas precisamos de mais.

Um país com dimensões como o Brasil, multicultural, multiétnico, precisa de mais representação, muito mais.

As grandes editoras despertaram para essa necessidade, mas isso foi uma construção, começou muito antes, quando a Maria Firmina dos Reis publicou "Úrsula", lá no século 19, começou com Machado de Assis, Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus. Eles, sim, desbravaram caminhos. Nós já pegamos essas veredas abertas e seguimos.

A espiritualidade é outro assunto que permeia os contos de maneiras diversas. Qual a sua relação com o tema?

itamar vieira - Raul Spinassé/UOL - Raul Spinassé/UOL
Escolha por personagens mulheres: "O mundo que me foi destinado pela história do homem não é um mundo muito agradável"
Imagem: Raul Spinassé/UOL

É bem complexo, até porque eu não sou uma pessoa religiosa. Embora eu tenha uma reverência quase sagrada às coisas vivas. Acho que todos nós carregamos essa dimensão, que alguns podem chamar espiritual, outros podem simplesmente olhar como afetiva. É entender, mesmo que a gente não professe nenhuma fé. Talvez eu persiga um pouco isso, nessa coletânea de contos em especial. Em "Torto Arado", [a religiosidade] surge como um dado de um fenômeno social. Mas, nesses contos, talvez, seja a capacidade de transcender.

Porque se você me perguntar o que é que reúne todas essas histórias, eu diria que são as pessoas em absoluta solidão, tentando superar as destinações que nos são dadas pelas circunstâncias da vida.

Essa produção literária é uma ferramenta de transformação social?

Acho que a literatura não tem uma função. Mas, quando a gente se debruça sobre ela, é inevitável que a gente pense no mundo que nos cerca. E aí aí tudo pode ser político.

O tema da terra, presente em "Torto Arado", também aparece nos contos — na relação social, individual ou mesmo espiritual. Como essa questão se transpõe para a literatura?

Toda essa minha experiência encontrando pessoas também é uma experiência de observador. E, assim como eu disse em "Torto Arado", muito daquilo que aparece no livro me foi relatado de uma maneira muito especial, do sentimento do homem com a terra. Quando eles falavam, era uma espécie de declaração de amor. É uma outra forma de olhar o mundo, basta ler os escritos de Ailton Krenak e Davi Kopenawa para vermos uma cosmovisão de mundo diversa da que a gente tem.

De que maneira seu trabalho no Incra influencia sua narrativa?

A minha expectativa ao elaborar literatura é sempre olhar para fora. E tudo isso veio a casar com a minha atividade laboral, encontrando pessoas, observando um Brasil sobre o qual pouco se fala, mas é muito rico e ainda muito pulsante.

Eu acho que eu sou uma espécie de etnógrafo da imaginação, porque eu fico imaginando, pelo que eu aprendi como pesquisador. E talvez eu tenha aprendido a observar mais as pessoas. Isso de alguma forma contribui para que eu traga experiências do mundo real para a literatura.

Você já está escrevendo seu próximo romance. Falará sobre o quê?

Enquanto eu escrevia "Torto Arado", eu percebi que ali eu não esgotava o mundo que eu queria retratar, dessa relação do homem com a terra, e projetei uma história dividida em três partes. O próximo romance se passa numa região do estado da Bahia perto do litoral e dá conta de uma comunidade que vive em torno de um mosteiro do século 17, construído por trabalhadores escravizados. Só que a história se passa num tempo que já se aproxima dos nossos dias, e as pessoas ainda vivem nessa realidade, há sombras desse passado.

E mais eu não conto porque eu vou descobrindo com o tempo. Eu durmo e acordo pensando nas personagens, mas, na hora em que eu vou sentar para escrever, elas me desafiam, me mostram coisas que eu não imaginava que elas fariam.

Você publicou "Torto Arado" primeiro em Portugal, depois no Brasil. Hoje, como vê esse percurso?

Quando eu terminei de escrever, nem sequer tinha editora para publicar, por isso que eu mandei para Portugal, foi o primeiro prêmio [LeYa] que tinha aberto inscrições. E fez um percurso inesperado, eu nunca imaginaria que uma história sobre uma família negra no interior da Bahia, num tempo que não é muito bem precisado, fosse encontrar tantos leitores. De fato, a coisa foi crescendo. Eu não sei explicar, só sei que foi uma onda muito bonita para mim. Acho que o livro ganhou esse lugar graças aos leitores.