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Diretora do HC: "2ª onda nunca acabou; há 10 mil com covid em UTIs de SP"

A médica e professora paulista Eloisa Bonfá é a primeira mulher a comandar o Hospital das Clínicas em São Paulo - Zanone Fraissat -18.dez.2020/Folhapress
A médica e professora paulista Eloisa Bonfá é a primeira mulher a comandar o Hospital das Clínicas em São Paulo Imagem: Zanone Fraissat -18.dez.2020/Folhapress

Lia Hama

Colaboração para Universa

01/06/2021 04h00

Primeira mulher a dirigir o Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo em 77 anos de história, Eloisa Bonfá está na linha de frente do combate à covid-19 no maior complexo hospitalar da América Latina. No cargo de diretora clínica do HC, ela comanda, ao lado do superintendente da instituição, um total de 22 mil funcionários contratados — o equivalente à população de Bonito (MS) —, além de 8 mil terceirizados. "Somos como prefeitos de uma cidade", diz a professora titular de reumatologia da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).

No combate à pandemia, a direção do HC reservou os 900 leitos do Instituto Central para atender exclusivamente os pacientes com covid-19. Internados com outras doenças como câncer ou vítimas de infartos foram transferidos para os outros sete institutos do complexo hospitalar, na maior operação já realizada na instituição. Mais de 7 mil casos confirmados de covid foram atendidos no HC, sendo que 70% deles tiveram alta.

Para lidar com a pressão e o estresse provocados pelo enfrentamento da pandemia, Eloisa fez as sessões de terapia oferecidas pela equipe do Instituto de Psiquiatria da USP. "A direção do hospital enfrentou inúmeras situações de tensão, da ameaça de greve dos médicos residentes aos processos na Justiça de quem queria se afastar por medo da covid", conta a diretora clínica, que criou áreas de baixa exposição ao vírus para que funcionários do grupo de risco pudessem trabalhar.

Fazer terapia foi importante para entender que aquelas pessoas não estavam brigando com a gente, mas com a situação. Elas estavam com medo e, em momentos de estresse, o melhor e o pior de cada um aparecem.

Aos 63 anos, a médica nascida em Ribeirão Preto (SP) falou a Universa sobre o desafio de aumentar o número de mulheres em postos de comando, o risco de uma terceira onda de covid e o horizonte de uma vida mais próxima do normal no Brasil. "Se o atual ritmo lento de vacinação for mantido, ainda teremos que conviver por um bom tempo com os protocolos de distanciamento e uso de máscara. No mínimo, até o final do ano."

UNIVERSA - Como é ser a primeira mulher a comandar o maior complexo hospitalar da América Latina?

ELOISA BONFÁ - É um desafio muito grande. O HC é um hospital universitário ligado à Faculdade de Medicina da USP. No meio acadêmico, uma mulher chegar ao topo da carreira, como professora titular, não é tão difícil se comparado a outras áreas da sociedade. Ainda assim, não é fácil. Se fosse, não teria demorado tantos anos para chegarmos à direção do hospital. O diretor clínico e o superintendente são os cargos máximos e estão no mesmo nível.

Mas espero que eu esteja ali não porque sou mulher e, sim, pela minha competência — e que bom que sou mulher.

Qual o risco de uma terceira onda de casos de covid no Brasil?

Ainda estamos na segunda onda e o tamanho dela é mais do que o dobro da primeira. Chegamos a 13 mil e poucos leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) no estado de São Paulo quando na primeira onda tivemos 6 mil, no máximo. Conseguimos baixar para dez mil, mas celebrar [essa queda] é extremamente perigoso no sentido de que estamos banalizando uma situação gravíssima.

E não dá para falar que a segunda onda acabou. Na verdade, ela fez um platô muito alto e pode ser que continue descendo devagar ou pode ser que volte a subir um pouco. O pouco que subir já é muito significativo.

Qual é o foco do seu trabalho no momento?

Ainda estamos na segunda onda da covid. Diferente da primeira onda, temos um número imenso de pacientes não-covid junto então estamos tentando equilibrar os dois pratos ao mesmo tempo. Na primeira onda, as pessoas não saiam de casa, então não tinha acidente de carro, não tinha acidente com arma branca. Agora existe um volume imenso e os casos graves estão sendo encaminhados para o Hospital das Clínicas.

Ao mesmo tempo, muita gente não se cuidou, não foi ao médico por medo de sair de casa. Agora os casos estão chegando muito avançados. O Instituto do Câncer está com inúmeros pacientes que, no início da pandemia, eram operáveis e agora não são mais porque passou tempo demais, houve metástase etc.

Você enxerga algum horizonte de vida mais próxima ao normal nos próximos meses?

Precisamos aprender a conviver com a covid e seguir os protocolos de distanciamento e uso de máscara. Você pode ver sua mãe? Pode, se estiver de máscara e manter o distanciamento. Com o atual ritmo lento de vacinação, vamos ter que conviver com isso durante um bom tempo, no mínimo, até o final do ano. Estamos vendo vários países que já fizeram vacinação em massa tirando a máscara. Mas como vamos fazer isso sem vacina?

A boa notícia é que a vacina está fazendo efeito. Observamos isso após a vacinação dos funcionários do HC em janeiro e fevereiro. Tem um trabalho da professora Anna Sara Levin, da USP, que mostra 50,7% de redução de casos de covid em funcionários do HC após a primeira dose e 73,8%, após a segunda dose. Já diminuíram as internações de pessoas de 70 anos ou mais.

Então a esperança hoje é mil vezes maior do que na primeira onda, só que o cansaço também é mil vezes maior. Mas seguimos na luta.

eloisa bonfa - Zanone Fraissat - 18.dez. 2020/Folhapress  - Zanone Fraissat - 18.dez. 2020/Folhapress
Bonfá, que também é professora titular da Faculdade de Medicina da USP, conta que fez terapia nos primeiros meses de pandemia para lidar com tanta tensão
Imagem: Zanone Fraissat - 18.dez. 2020/Folhapress

Você e a Ester Sabino, cientista que fez o primeiro sequenciamento genético do novo coronavírus no Brasil, foram homenageadas em março pela USP. Das 12 pessoas que receberam a medalha anteriormente, apenas uma era mulher. Por que essa diferença, considerando que as mulheres são 37% dos docentes na universidade?

Existe uma questão cultural enraizada que demora um tempo para mudar. De forma geral, as mulheres para atingirem cargos altos precisam de ações afirmativas, que deem condições para que possam exercer seu potencial.

Muitas vezes quando elas se encontram no período profissional mais produtivo é justamente quando estão constituindo família. São muito requisitadas em casa e acumulam tarefas. É preciso oferecer estrutura, criar creches, dar incentivos e ter um conceito familiar em que as tarefas domésticas são compartilhadas. Do contrário, o homem com mesmo nível profissional pode ir para a frente e ela vai ficando para trás.

Como foi montar a operação de guerra à covid dentro do HC?

O Hospital das Clínicas tem, há muitos anos, um plano de desastre para lidar com situações de crise como essa. Toda vez que existe risco de não conseguir suprir a demanda, esse plano é ativado. Foi o que aconteceu no dia 31 de janeiro do ano passado, quando ainda não havia casos de covid no Brasil, mas sabíamos que chegariam. Em meados de março de 2020, a doença veio como um furacão. Foi quando se pensou em dedicar um instituto inteiro para covid. Em menos de 15 dias, transferimos todos os pacientes com outras doenças para outros institutos. Foi como uma operação de guerra. Não havia leitos, nem médicos ou respiradores para tanta demanda. Em um mês e meio passamos de 84 leitos de UTI para 300.

O hospital é antigo, não tem estrutura. A rua em frente foi tomada por geradores de energia. Equipamentos de anestesia foram adaptados para ventilação. Muitos ex-residentes do HC vieram ao hospital assumir postos como voluntários. Empresas privadas nos deram suporte assim como hospitais privados.

A primeira onda no Brasil começou com pessoas de melhor poder aquisitivo, que vieram da Europa e foram atendidas, em sua maioria, na rede privada. Ali a crise começou duas a três semanas antes da rede pública, quando para eles estava abaixando, para nós estava subindo. Então o Sírio-Libanês, Einstein, HCor e a Beneficência Portuguesa, hospitais privados de SP, vieram nos ajudar a montar as UTIs.

Como vocês lidaram com os funcionários dos grupos de risco que temiam se expor ao vírus?

60% dos funcionários contratados do HC têm mais de 60 anos. Imagina perder 60% dos funcionários numa situação que já estava no limite. Então todo mundo foi recrutado, não demos autorização para home office. Quem é do grupo de risco foi remanejado para trabalhar nas áreas de baixa exposição. Os que não estavam na assistência, estavam ajudando na distribuição, recebendo doações ou trabalhando em laboratório. Mas as pessoas estavam com tanto medo que não queriam ir a lugar nenhum, queriam ficar trancadas em casa. O medo era maior do que a capacidade de colaborar.

Como ficou sua saúde mental diante de tantas pressões?

O Instituto de Psiquiatria da USP fez várias ações de apoio psicológico aos nossos funcionários. Você podia chamar por telefone 24 horas e pedir ajuda. Foi colocada uma psiquiatra em ação proativa nas UTIs para atender as equipes. Também fizeram um trabalho conosco, com os oito da liderança do HC.

No início da pandemia, fiz sessões de terapia ao longo de dois meses. Foi importante porque esse começo foi muito difícil. Houve muito questionamento, ameaça de greve dos médicos residentes, além de processos na Justiça, de gente tentando se afastar do trabalho.

Os professores titulares eram agressivos conosco. A gente falava para eles: "Olha, vamos precisar usar a sua área". Eles respondiam: "Você está pensando o quê? Não vou deixar". Nós pegamos as salas dos professores para transformar em vestiários e acomodações para as pessoas dormirem. Muitos médicos estavam com medo da doença, de infectar familiares idosos.

A terapeuta reforçou a questão de entender que eles não estavam brigando com a gente, mas com a situação. Em momentos de estresse, o melhor e também o pior das pessoas aparecem.

Como era a sua rotina nesse período?

Nós praticamente moramos no Instituto Central do HC. A gente chegava antes das sete da manhã e ficávamos até depois das oito da noite, inclusive em finais de semana e feriados. Eu chegava em casa, comia, dormia e no dia seguinte começava tudo de novo. Não tínhamos opção. Para montar o que montamos em tão pouco tempo era o dia inteiro fazendo isso, resolvendo problemas, organizando a logística, procurando saídas. A gente planejou isolar o Instituto Central por dois a três meses e ficamos até outubro lá. Nada era previsível, a gente não conhecia a doença.

Qual foi o momento mais dramático?

Teve uma paciente que chegou grávida na UTI. Ela estava passando muito mal e ficou uma discussão entre o obstetra e o intensivista se poderia operar. Ficaram discutindo, ela piorou e tiveram que operar na terapia intensiva mesmo, não dava tempo de levar ao centro cirúrgico. A paciente ao lado começou a rezar alto: "Meu Deus, ajuda essa mãe. Meu Deus, ajuda esses médicos". Foi um momento de luta extrema pela vida e felizmente mãe e filho se salvaram.

Lembro de uma médica do pronto-socorro que encontrei chorando e perguntei: "O que aconteceu?". Ela falou: "Acabei de cumprir uma promessa. Um paciente chegou muito mal e falei: 'Prometo que você vai ter alta e quando isso acontecer vou cantar uma música para você'". Ela tinha acabado de cantar. Houve muitos momentos emocionantes como esses.