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Constituinte chilena: mais votadas, mulheres terão que ceder vagas a homens

Mulher deposita voto em urna durante as eleições para escolher representantes que redigirão nova Constituição no Chile - AFP
Mulher deposita voto em urna durante as eleições para escolher representantes que redigirão nova Constituição no Chile Imagem: AFP

Mariana Gonzalez

De Universa

20/05/2021 04h00

Nas eleições do último fim de semana, o Chile elegeu mais mulheres do que homens para compor a Assembleia Constituinte, grupo que passará os próximos meses redigindo as novas leis do país — 11 das 81 das mulheres eleitas, no entanto, terão que ceder suas vagas a candidatos homens para seguir a regra de igualdade de gênero.

A nova Constituição chilena será a primeira do mundo escrita igualmente por homens e mulheres. Por isso, o gênero que superasse o outro em número de eleitos teria que ceder algumas cadeiras para alcançar a proporção de 50% de homens e 50% de mulheres.

A regra de igualdade foi escrita para evitar o predomínio masculino entre os constituintes, mas, diferente do que se esperava, as mulheres foram eleitas em maior proporção: 81 contra 74. Agora, 11 delas serão substituídas por homens até que o grupo final, de 155 pessoas, seja composto por 78 homens e 77 mulheres. A decisão de quem cederá a vaga e quem assumirá o lugar vai respeitar a ordem dos mais e menos votados.

A norma assegura que, numa Constituição paritária, nenhum gênero ocupe mais que 55% das cadeiras. Como 155 é ímpar, um dos gêneros tem uma cadeira a mais.

Outro resultado que surpreendeu foi a vitória dos candidatos independentes à Assembleia Constituinte, aqueles que não pertencem a nenhum partido. De acordo com o jornal chileno "La Tercera", a maioria deles tem menos de 45 anos e está posicionada à esquerda no espectro político, com pautas consideradas progressistas, como direitos das mulheres, da população LGBTQIA+ e cuidados com o meio ambiente.

A Constituinte chilena também é a primeira a levar em consideração os povos originários: 17 vagas foram reservadas e preenchidas por indígenas, respeitando a proporção deles na população do país.

Os 155 integrantes do grupo passarão entre nove meses e um ano elaborando a nova Constituição. O texto será submetido à aprovação da população por meio de um plebiscito, no ano que vem. Se for aprovada, a Constituição entra em vigor; se for reprovada, a atual continua valendo até uma nova convocação.

Chilenos contam votos ao final das eleições que escolheram representantes para escrever nova Constituição, em Santiago - Getty Images - Getty Images
Chilenos contam votos ao final das eleições que escolheram representantes para escrever nova Constituição, em Santiago
Imagem: Getty Images

"Constituição escrita por mulheres deve reduzir desigualdades"

A nova Constituição substituirá a Carta Magna de 1981, redigida na ditadura de Augusto Pinochet, que durou de 1973 a 1990. A possibilidade de que um número igual de homens e mulheres escrevam o documento é um dos maiores feitos do poderoso movimento feminista que se configurou nos últimos anos no país — mulheres comemoraram a conquista com gritos de "nunca mais sem nós" em manifestações pelo Chile desde outubro, quando a regra da igualdade foi aprovada.

Para a professora da Fundação Getúlio Vargas Luciana de Oliveira Ramos, mestre em ciência política pela USP e especialista em gênero e políticas públicas, novas leis escritas com forte presença de mulheres podem contribuir para reduzir desigualdades ainda muito marcantes no país.

O Chile tem uma estrutura muito desigual em termos de gênero, economia e questões sociais. Por isso, a decisão por uma Constituição igualitária foi tão interessante: ela redistribui o poder, faz novas escolhas em relação a quem vai representar as pessoas nas novas diretrizes políticas mais de 30 anos depois da ditadura Pinochet

Luciana destaca que o Chile foi um dos últimos países do mundo a permitir o divórcio, em 2004, e que não tem sistemas públicos de saúde e educação — fatores que a nova Carta Magna deve rever.

"Um sistema em que absolutamente tudo é pago gera muitas desigualdades: pessoas se endividam para estudar, para deixar os filhos pequenos em uma creche, especialmente mulheres jovens e mães solo, que precisam de alguém que cuide dos filhos para poder trabalhar. Isso afeta significativamente o papel da mulher na sociedade, ainda mais das mulheres negras", explica. "Mulher não fala só de pauta de mulher, mas pensa em saúde pública, educação pública, direitos da primeira infância, economia, transporte."

Discutir novas leis por uma perspectiva feminista sem dúvidas colabora para a redução da desigualdade social de toda a população, bem como a diminuição da violência contra as populações mais pobres.

A professora Luciana de Oliveira Ramos afirma que as mulheres têm exercido papéis fundamentais nas mudanças de legislação na América Latina e cita os casos da legalização do aborto na Argentina e na Colômbia. "O mesmo deve acontecer no Chile, com a nova Constituição", prevê.

Feministas marcham em Osorno, no Chile, em 2018, em defesa dos direitos das mulheres - Getty Images - Getty Images
Feministas marcham em Osorno, no Chile, em 2018, em defesa dos direitos das mulheres
Imagem: Getty Images

"O que conseguimos é feito histórico", diz feminista trans

O Chile estabeleceu lei de cotas na política há cinco anos, proibindo que homens sejam mais que 60% entre os candidatos nas eleições — mesmo assim, como no Brasil, a reserva de vagas para mulheres na disputa por cargos políticos não se converteu em igualdade entre os eleitos. Por lá, no Congresso atual, dos 155 deputados, 35 são mulheres; no Senado, entre 43 parlamentares, há apenas dez mulheres.

Em entrevista concedida a Universa em abril, a cientista política Pamela Figueroa, que foi secretária de governo da ex-presidente chilena Michelle Bachelet, afirmou que "a perspectiva de gênero é um elemento transversal para o futuro texto constitucional do Chile".

"Ao existir mais mulheres no debate público, podemos colocar também a agenda de gênero na discussão do texto constitucional. Com isso, não se deseja apenas aumentar a representação delas, mas a não discriminação das mulheres nos sistemas político, econômico e social."

Emilia Schneider, uma jovem trans e feminista, que ganhou notoriedade no Chile como porta-voz da grande marcha de 8 de março de 2018, disse à agência AFP que a lei de igualdade na redação da nova Constituição é uma "janela de possibilidades". Schneider se candidatou à Constituinte e acabou não sendo eleita, mas celebra o resultado das eleições de domingo:

O que conseguimos no Chile abre uma janela de possibilidades. É um feito histórico não só para nós, mas para todas as mulheres e dissidências em nível mundial.

A jovem liderança, no entanto, adverte que o fato de mulheres serem eleitas para redigir a nova Constituição não garante que as ideias feministas estejam impressas no documento: "É preciso levar em conta que o feminismo não é uma identidade, mas um projeto político e uma visão de mundo".