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"Há dez anos estava presa. Hoje estudo para ajudar mulheres em presídios"

Camila Felizardo, 30, ficou presa dos 18 aos 22 anos e hoje faz faculdade de serviço social Imagem: Reprodução

Camila Felizardo, em depoimento a Camila Brandalise

De Universa

16/05/2021 04h00

"Fui presa aos 18 anos. Estava em situação de rua, era dependente química e traficante. Fiquei quatro anos privada de liberdade. Uma década atrás, não tinha expectativa nem esperança no futuro. Vi companheiras morrendo, teve muito sangue envolvido. Sou uma sobrevivente. Hoje, estudo para ajudar outras mulheres com a mesma vivência que eu.

Meu nome é Camila Felizardo, tenho 30 anos, moro em São Paulo e estou no terceiro ano da faculdade de serviço social. Estudo o sistema penitenciário feminino, assunto que não é muito falado e deveria ter mais atenção.

Sou integrante de dois grupos de estudo e pesquisa. Um sobre violência, segurança e Justiça na UFABC (Universidade Federal do ABC) e outro sobre educação em ambientes de privação de liberdade na USP (Universidade de São Paulo). Quero ajudar essa população que eu mesma represento, agir pela mudança na vida das pessoas. Não ficar só no discurso e enxugar gelo.

Fui vítima de um sistema punitivo que aprisiona pessoas vulneráveis. Quando saí, tive apoio da minha família. Voltei a viver na minha casa e a trabalhar. No começo, como atendente em lojas, depois na serralheria do meu pai. Depois, fiz um curso de manicure, trabalho que exerço até hoje e que paga parte da minha faculdade, onde tenho uma porcentagem de bolsa de estudos.

Tinha que tomar uma decisão quando saí do presídio: ou voltar a ser quem era ou seguir um caminho diferente. Decidi pelo segundo. Muitas pessoas, ao sair, querem tomar um caminho diferente também, mas não têm as mesmas oportunidades que eu tenho

Além disso, sou uma mulher branca, o que é muito diferente de ser uma egressa negra, que sofre muito mais preconceito. Tenho moradia, minha família. Muita gente não tem nem para onde ir quando sai, nunca estudou ou trabalhou nem tem a possibilidade de começar. Então eu sou uma exceção.


"Cadeia é um sistema falido, ninguém é reformado"

Cadeia não serve para nada. Você está lá trancado, não faz nenhuma atividade, as funções cognitivas, audição, paladar, olfato, não são estimuladas. Então não traz melhora nenhuma para a sociedade. É um sistema totalmente ineficaz, ninguém se reforma.

Pelo que vivi e estudo tenho certeza que o método eficaz para emancipar uma pessoa é por meio da educação. Assim, capacitada para ter oportunidade de trabalho de moradia, pode recuperar a dignidade. São todos direitos constitucionais.

Falar que 'bandido bom é bandido morto' ou então que alguém tem que 'apodrecer na cadeia' é um pensamento racista e classista. Pensam que prender alguém vai resolver os problemas da sociedade. Não. A pessoa pode passar 30 anos presa, vai mudar o quê? O Brasil é o terceiro país que mais prende pessoas no mundo. A sociedade está se sentindo mais segura? Os problemas estão sendo resolvidos? Não, pelo contrário

"Vi companheira morrendo de infarto porque ninguém veio ajudar"

Era para eu ter ficado presa por menos tempo, minha pena aumentou porque fiz uma reivindicação por uma companheira. Ela vivia com HIV, se sentia muito mal por causa do coquetel de remédios, estava com a imunidade baixa e precisava de intervenção médica, mas não era atendida. Um dia ela teve uma atitude agressiva, chutou uma lata de lixo. A enfermeira queria colocá-la em um castigo, deixá-la na solitária, e eu pedi para ir junto para que ela não ficasse sozinha.

Já vi companheira morrer porque infartou na cela. Eram 500 presas gritando, pedindo socorro. Não quiseram abrir a porta para ajudar, ninguém apareceu.

Ainda tenho contato com várias mulheres que estiveram privadas de liberdade na mesma época que eu, sinto muito carinho por todas. Toda história de vida é importante. Mas uma das mulheres que conheci, que ainda está presa, me marcou muito porque considero seu caso emblemático.

Encarcerada aos 18, cumpria pena de 30 anos de prisão. Não lembro sua idade, mas me marcou muito pensar que ela perdeu a vida. Imagina, quando entrou não tinha internet, não sabe nem que isso existe. Ela tem muito medo de sair da prisão, não sabe o que vai acontecer. Viveu fatos históricos, rebeliões, casos envolvendo o PCC. Para mim, ela representa o sofrimento que uma mulher presa vive.

"Mulheres são abandonadas no cárcere"

Tem muita diferença entre ser um homem ou uma mulher presa. A gente menstrua, e em muitas prisões não há acesso básico à higiene, simplesmente não há preocupação em relação a isso. É degradante.

Mulheres são mães e chefiam casas. Quando prende uma, está tirando a mantenedora do lar de sua casa. Então desestabiliza toda uma família. Também tem a questão das que têm filhos no cárcere. Geram a criança dentro de muitas limitações e, depois de determinado tempo, precisam entregar o filho. Se não tiver uma família que receba a criança aqui fora, vai para adoção.

E outro ponto é que a mulher é abandonada no cárcere. No geral, não recebem visitas. Se aparecem, são outras mulheres: mães, avós, tias, que ficam com os filhos delas. Aí tem muito machismo, porque se é o homem que vai preso, sua mulher o visita. Muitas são presas porque se envolvem em crimes incentivados pelos companheiros, mas quando elas são detidas, eles somem."

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