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"A cara do pai": jogadora Cris Rozeira relata lesbofobia após filho nascer

A jogadora de futebol Cris Rozeira (à dir.) e a mulher, Ana Paula Garcia, com Bento - arquivo pessoal
A jogadora de futebol Cris Rozeira (à dir.) e a mulher, Ana Paula Garcia, com Bento Imagem: arquivo pessoal

Júlia Warken

Colaboração para Universa

11/05/2021 04h00

Cristiane Rozeira, uma das maiores jogadoras do nosso futebol, acaba de tornar-se mãe pela primeira vez. O pequeno Bento veio ao mundo em 26 de abril, depois de ser muito aguardado por Cris e sua mulher, a advogada Ana Paula Garcia.

As duas se casaram em agosto de 2020 e fizeram uma cerimônia simbólica sem convidados em Ilhabela, no litoral paulista. Logo depois, em setembro, anunciaram que a família iria crescer. Ana gestou o bebê a partir de um óvulo de Cris.

Atualmente, a camisa 11 da Seleção se prepara para a Olimpíada de Tóquio e compete no Campeonato Brasileiro com o Santos. São muitas emoções dentro e fora de campo, especialmente num cenário de pandemia, mas Cris explica que a pausa no futebol em 2020 acabou sendo propícia para que ela passasse pelo processo de coleta dos óvulos — por envolver a prescrição de hormônios que podem alterar exames antidoping, esse é um procedimento delicado para as atletas.

A jogadora conversou com Universa sobre a chegada de Bento e os desafios de ser uma mãe lésbica no Brasil.

UNIVERSA: Nascimento do Bento, pandemia, Campeonato Brasileiro, preparativos para Tóquio... Como está sendo viver tudo isso ao mesmo tempo?

CRIS ROZEIRA: Desde o comecinho foi uma preocupação muito grande, por conta da pandemia, e até agora eu tenho muito cuidado quando retorno dos treinos e viagens que eu acabo tendo que fazer. Em momentos em que eu convivi com pessoas que tiveram a covid-19 eu fiquei em hotel isolada, longe da Ana, para que não trouxesse nenhum tipo de problema para ela ou para o bebê. Nós continuamos muito ligadas nesses cuidados todos em relação à pandemia.

E a emoção, como fica?

Tem muita ansiedade, porque eu saio para jogar, saio para treinar e quero ir embora logo. Eu falo 'gente, acelera aí, eu tenho filho, vamo embora' [risos]. E as meninas brincam, dão risada, dizem 'Vamos, gente, a Cris tem filho, tem que ir para casa'. É um misto muito grande de sentimentos, porque eu quero fazer o meu trabalho da melhor maneira possível e também quero terminar, sair correndo para ficar perto da minha família.

A jogadora de futebol Cris Rozeira e a esposa Ana Paula Garcia com o filho Bento, que nasceu em 26 de abril, - arquivo pessoal - arquivo pessoal
A jogadora de futebol Cris Rozeira e a esposa Ana Paula Garcia com o filho Bento, que nasceu em 26 de abril,
Imagem: arquivo pessoal

Depois do casamento, não demorou muito para que você e a Ana anunciassem a gravidez. Como decidiram que era o momento de viver tudo isso?

Foi um momento nosso planejado. Infelizmente, por conta da pandemia, acabou acontecendo uma paralisação do futebol por muito tempo. Então foi a hora em que a gente pensou nisso. Nós não teríamos esse tempo em outro momento, porque era um processo em que eu teria que tomar medicação. Então o nosso médico teve que pegar toda a informação relacionada a dopping. E teve um período que a gente levou para conseguir liberação, de falar com o médico do COB (Comitê Olímpico Brasileiro), falar com a ginecologista, falar com o médico da Seleção — para a gente conseguir fazer esse procedimento. E nesse momento eu não conseguiria parar de jogar para poder engravidar. Qual é o clube que faria um contrato comigo com 36, 37 anos? Seria muito mais difícil esse retorno ao futebol para mim.

Como foi o processo da gravidez?

Nós decidimos que a Ana gestaria justamente porque é um período em que eu não teria como parar, com Olimpíada encostada — é minha última Olimpíada, espero que eu consiga ir. Não teria essa possibilidade de engravidar. Eu congelei os óvulos, porque o médico conversou comigo sobre a idade [ideal] para a mulher poder engravidar.

Então ela falou 'Amor, a gente decide assim. Nós queremos ser mães e acho que é um momento em que a gente consegue conciliar tudo, eu vou gerar o nosso bebê'. Ela é advogada, por isso consegue trabalhar de casa. Então foi tudo muito planejado, pensado dessa maneira. Eu falei: 'Amor, eu acho que na hora em que eu parar de jogar a gente consegue fazer o inverso, para eu poder ter a sensação de engravidar'

Como vocês decidiram que o bebê se chamaria Bento?

Nós tínhamos algumas opções de nomes e tem um montão de gente na família com uns nomes meio parecidos. Queríamos colocar um nome simples e que passasse sentimento, nós duas escolhemos juntas.

Quem te acompanha no Instagram sabe que você é muito aberta na hora de falar da vida pessoal. O que faz com que encare a exposição de maneira tão tranquila?

cris rozeira e bento - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Cris conta que ela foi a doadora de óvulo, já que não poderia gestar Bento por causa da Olimpíada
Imagem: Arquivo pessoal

É porque eu acho que tem muitas pessoas que se identificam com a gente. A gente sabe que existem muitas mulheres e muitas adolescentes que têm dificuldade de aceitação dos pais ou então que acham que 'Ah, não, eu nunca vou encontrar uma pessoa com quem eu vou conseguir ter uma família, porque talvez isso não seja possível'. E eu e a Ana a gente traz muito isso para as pessoas. Recebemos muitas mensagens de pessoas dizendo 'Meu Deus, tem como ser feliz, sim. Tem como dar certo, tem como encontrar uma pessoa bacana, tem como eu ser mãe com outra mulher'.

Mesmo a gente recebendo mensagens como 'Ai, mas cadê o pai?' ou 'Olha, é a cara do pai', a gente conseguiu atingir muitas pessoas e recebemos muito carinho, muito respeito, muitas mensagens positivas. Então eu acho que a gente acaba levando para as pessoas essa mensagem de elas acreditarem que podem encontrar uma pessoa para construir a vida, de acreditar que, sim, você pode ser mãe com outra mulher ou pode ser pai com outro homem

Como você lida com esses comentários homofóbicos que acabam surgindo?

Olha, eu sou tão da paz que às vezes eu bato o olho, apago e bloqueio. Eu brinco com as meninas que a maternidade me trouxe uma paz tão grande nesse sentido. Eu acho que me trouxe a tranquilidade de não deixar que esse tipo de mensagem faça mal para a gente, para a nossa família. Eu prefiro ficar com todas as mensagens positivas e bonitas que as pessoas mandam do que com meia dúzia de pessoas frustradas e infelizes que usam as mídias sociais para serem agressivas, preconceituosas e homofóbicas.


Maio marca os dez anos da legalização da união estável entre pessoas do mesmo sexo no Brasil e oito anos da legalização do casamento. É pouco tempo e, como você mesma disse, muitas pessoas ainda não aceitam e não respeitam famílias formadas a partir de laços homoafetivos. O que você teria a dizer para essas pessoas?

Eu acho que é um processo — que eu gostaria que não fosse longo — para você fazer essas pessoas entenderem que o que é bonito é amar, é o amor entre duas pessoas, independente de se é entre duas mulheres ou dois homens. O amor faz a gente respeitar o próximo. A gente deveria começar a entender isso e passar isso aos nossos filhos, porque as crianças têm todo esse amor no coração e vão aprendendo o que você passa a elas.

A partir do momento em que você passa a xingar duas mulheres juntas, a dizer que isso não é o correto da família tradicional brasileira, é isso que a criança vai entender. Eu acho que está na hora de a gente mudar um pouco esse tipo de pensamento e respeitar. É só o que a gente quer: respeito.

Tomara que meu filho não tenha que escutar essas piadinhas que tem até hoje de 'Olha, mas você não tem pai' ou 'Mas e o seu pai?'. Uma vez eu respondi um rapaz e disse: engraçado você vir me cobrar que o meu filho não tem pai, cobre também os seus amigos que traem as esposas grávidas, que agridem os filhos, que não pagam pensão. É esse o tipo de pessoa que a sociedade precisa cobrar.

No futuro, seu filho vai tomar conhecimento sobre esse cenário no qual vivemos. Como você encara isso?

Desde que soubemos que seria um menino, a gente já conversava bastante sobre isso.

Somos duas mamães com um menino, a gente quer fazer com que ele seja um homem de caráter, que ele tenha respeito pelo próximo, pela diversidade, para que ele seja o pai de um cara legal no futuro

É isso que a gente quer passar para ele, toda educação possível, toda a generosidade possível — que eu acho que é isso que precisamos ter dentro do coração. E força, porque pode ser que ele tenha que conviver com esse tipo de comentário, com esse tipo de pessoa. Então conversamos muito sobre como a gente vai prepará-lo para esse mundão.

Como você imagina sua família daqui a dez anos?

Caramba, eu não consigo [risos]. Eu acho que vejo a gente vivendo tudo que a gente tem planejado. O Bento podendo crescer descalço, que é o que a gente gosta, pisando na terra, aproveitando a infância. E eu falo que ele é meu amigão, quero que ele continue sendo meu amigão, contando com a gente para tudo. E vejo eu e a Ana superbem, supercompanheiras — como somos hoje. Acho que é isso que a gente deseja... Muita luz e muita felicidade.