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Faxina, transladar caixão:sem cliente, motoristas de van escolar fazem bico

A motorista de van escolar Greice de Araújo Nicoletti,39, de SP, participa do movimento SOS Transporte Escolar Autônomo - Arquivo pessoal
A motorista de van escolar Greice de Araújo Nicoletti,39, de SP, participa do movimento SOS Transporte Escolar Autônomo Imagem: Arquivo pessoal

Ana Beatriz Felicio

Colaboração para Universa

07/05/2021 04h00

Há um ano a motorista de van escolar Sandra Ribeiro, 47, precisou sair do apartamento popular onde morava, localizado em Perus, na zona oeste de São Paulo, e ir morar com os pais. Sem renda fixa, não estava conseguindo arcar com as prestações do lugar e sua própria alimentação. "Ou eu comia e bebia ou pagava a prestação do apartamento, que inclusive está com algumas parcelas atrasadas, já que agora acabou todo dinheiro que eu tinha guardado", diz a Universa.

Com o fechamento das escolas devido à pandemia de covid-19, a situação de insegurança financeira tem sido vivida por muitos trabalhadores que atuam com transporte escolar. Fora do auxílio emergencial, a categoria tem feito protestos para conseguir mais apoio do governo e, individualmente, se virando como pode, recorrendo muitas vezes a bicos.

Sandra trabalha na área há 20 anos, atendendo crianças de seis meses até 14 anos, em escolas e creches públicas da região onde mora. Nos primeiros meses da pandemia ainda recebeu 50% do valor da mensalidade de alguns clientes, mas com o agravamento da crise, todos os contratos foram suspensos.

sandra ribeiro - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Sandra Ribeiro, 47, motorista de van escolar em SP
Imagem: Arquivo pessoal

Para tentar contornar a situação financeira, além da mudança para casa dos pais, ela precisou vender o carro de passeio e mais recentemente começou a trabalhar como motorista particular, função que tem intercalado com o transporte das poucas crianças que voltaram às aulas no último mês;

Em São Paulo, o retorno das aulas presenciais na rede pública estadual aconteceu no dia 14 de abril e na rede municipal, no dia 12. Escolas particulares também puderam reabrir, porém em nenhum caso a presença é obrigatória e as escolas devem obedecer protocolos de segurança, como o limite máximo de até 35% de alunos, exceto para educação infantil.

Antes da pandemia, Sandra contra que transportava cerca de 95 crianças. Na última semana, foram apenas dez, justamente as que estudam em creches. "Está tudo muito incerto ainda. Algumas famílias não querem mandar as crianças, porque a situação da covid se agravou bastante, elas ficam com receio. Está bem difícil, então eu concílio os dois empregos."

"Me ofereceram transladar corpos, mas não tive psicológico"

Em março deste ano, Sandra foi uma dos cerca de 150 motoristas de vans que participaram de uma reunião com uma empresa contratada pela prefeitura para intermediar a contratação de peruas escolares para realizar o translado de corpos de pessoas mortas em decorrência da covid-19, de hospitais da capital paulista para cemitérios.

"A sensação durante a reunião foi desesperadora, eu fiquei bem abalada. Eu até consegui uma vaga, mas não aceitei o trabalho porque não tive psicológico, então eu desisti da vaga e passei para um dos meus amigos que estavam lá".

De acordo com Sandra, os profissionais que aceitassem as vagas teriam que tirar as faixas de identificação dos carros e, além dos salários, receberiam equipamentos de proteção e um valor para higienizar e recolocar a identificação de transporte escolar no final da prestação do serviço. Ela conta que nunca imaginou que a categoria passaria por algo assim.

É muito triste, com transporte escolar a gente carrega vidas, é alegre, são crianças, carregamos o futuro do nosso Brasil. De repente você se vê numa situação de estar carregando corpos da covid? Eu não saberia se eu iria conseguir nem ligar o rádio dentro da van, sabendo que ali estaria levando um ente querido de alguém, uma pessoa que tinha partido

SOS transporte escolar

Quem também sentiu os impactos financeiros e teve que pensar em novas soluções foi a condutora de transporte escolar Greice de Araújo Nicoletti, 39. Há 13 anos no ramo, ela é proprietária de três vans, — duas já quitadas e uma ainda financiada.

Mãe de duas meninas adolescentes e moradora do bairro Cidade Líder, na zona leste, ela está sem renda desde abril de 2020. Desde então já trabalhou vendendo roupas infantis, como diarista e também em campanhas eleitorais. Além disso, no final do ano, entregou cestas básicas e de Natal.

Atualmente voltou com o transporte escolar, mas conta que como são poucas crianças, as coisas não vão tão bem.

Tenho 12 crianças, sinceramente não paga as contas. O diesel está muito caro, mas pelo menos estou colocando comida em casa

Greice faz parte do movimento "SOS Transporte Escolar Autônomo", que têm organizado manifestações e cobrando mais apoio à categoria, como a isenção de taxas e a criação de um auxílio emergencial.

Ela conta que, por ano, precisa pagar três vistorias nas vans escolares, além dos gastos com cursos, garagem e taxas para renovar a habilitação. Atualmente está com um processo aberto para tentar segurar o pagamento das parcelas da van financiada.

"Tenho crises de ansiedade; fomos esquecidos pelo governo"

Na zona sul, a motorista de transporte escolar Sandra Costa da Silva, 45, tem vivido problemas parecidos. Antes da pandemia, o dinheiro que obtinha com a profissão era o único sustento da casa que divide com dois filhos no bairro Vila Inglesa. Ela relembra que no começo da pandemia chegou a propor que os pais das crianças que transportava continuassem pagando a mensalidade com descontos. Poucos aceitaram, mas com o agravamento da crise e as escolas fechadas, interromperam o pagamento.

Fora a humilhação que passei, pois muitos acharam um absurdo pagar por algo que não seria usado, passei a viver da ajuda de familiares, vendi muitas coisas minhas para arcar com as despesas básicas

Além das vendas de objetos pessoais, Sandra também fez rifas. Mas atualmente as principais contas de casa são pagas pelos pais. Para auxiliar nas despesas, seu filho mais velho, de 18 anos, começou a trabalhar no final de abril como ajudante de motorista. E a filha, de 16, segue procurando emprego como jovem aprendiz.

sandra costa - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A motorista Sandra Costa precisou vender objetos pessoais para conseguir ter algum dinheiro
Imagem: Arquivo pessoal

"O transportador escolar foi esquecido pelo governo! Alguns poucos, que mantém contrato com a prefeitura, receberam uma porcentagem do pagamento mensal. Já entre os privados, poucos tiveram direito a um auxílio".

Ela conta que chegou a cogitar vender a van de trabalho, que agora está com um pequeno vazamento de óleo, cujo conserto não possui dinheiro para pagar.

Antes da pandemia, além de atender crianças de uma municipal, também transportava crianças atendidas por um projeto de educação complementar para alunos da rede pública que era mantido por uma empresa privada. Mas as atividades não retornaram. Na semana da volta às aulas, apenas uma das crianças que costumava levar indicou que iria retornar, antes eram 44. Todo esse cenário também está afetando a saúde mental da motorista.

Com tudo isso de pandemia e falta de trabalho, minha crise de ansiedade piorou muito. Faço tratamento com psiquiatra e psicólogo e o que tem me ajudado é fazer caminhadas ao ar livre, já que as academias estão fechadas e eu não tenho dinheiro para arcar com a mensalidade

van de greice ara - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Greice usa sua van para fazer alguns trabalhos de entrega de cestas básicas
Imagem: Arquivo pessoal

Procurada pela reportagem, a Prefeitura de São Paulo disse em nota que, a pedido da categoria, tem tomado desde o ano passado medidas para beneficiar os condutores de vans escolares.

Por meio de uma portaria conjunta entre a Secretaria Municipal de Transportes e a Secretaria Municipal de Educação, concedeu aos 2.665 condutores credenciados no Transporte Escolar Gratuito um auxílio mensal de 50% dos valores pagos em seus contratos para transporte de estudantes da rede municipal em caso de os pais terem optado por aulas remotas. Esse auxílio pode chegar a R$ 4.678, dependendo da quantidade de alunos transportados antes da pandemia.

Já para os 13.514 transportadores escolares com cadastro ativo (privados e do TEG), foi concedida a prorrogação, por mais um ano, da validade dos documentos necessários para o exercício da atividade que venceria em 2021, sem a cobrança de preços públicos e multas. A mesma medida já havia sido concedida no ano passado.

Além disso, informou que determinou que os veículos de transporte escolar que atingirem em 2021 a idade limite para operação poderão ser mantidos em atividade até 31 de dezembro de 2022.