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"Distribuo cilindros de oxigênio na Índia para ajudar famílias com covid"

Eleena George é voluntária na ONG Tycia Foundation e ajuda na distribuição de cilindros de oxigênio em Delhi, na Índia - Arquivo pessoal
Eleena George é voluntária na ONG Tycia Foundation e ajuda na distribuição de cilindros de oxigênio em Delhi, na Índia Imagem: Arquivo pessoal

Eleena George, da Índia, em depoimento a Júlia Flores

De Universa

04/05/2021 04h00

"A Índia vive uma crise de falta de oxigênio. O cenário é catastrófico por causa da pandemia, já que o país é o novo epicentro mundial de contaminações com quase 400 mil novas infecções e uma taxa diária de 4 mil óbitos. Para ajudar a reverter essa situação, atuo como voluntária em uma ONG que arrecada e distribui cilindros de O2 para pacientes necessitados que moram em Delhi, capital do país.

Na verdade, não é de agora que me tornei voluntária na ONG Tycia Foundation. Faz cerca de três anos que meu trabalho é ajudar os outros. Aos 24 anos, quando comecei a atuar na organização, era responsável por liderar o programa 'Segunda chance', projeto voltado para a ressocialização de presos acusados de cometerem crimes de violência contra a mulher. Por causa do lockdown, nossas visitas às cadeias foram proibidas e decidimos suspender o projeto por um tempo.

Desde 2020 o foco de atuação da ONG mudou e passamos a criar ações que tentavam suavizar os problemas decorrentes da pandemia. Na primeira onda de contaminação, o governo indiano decretou um lockdown severo, que suspendeu até os serviços de transporte coletivo do país.

Antes da pandemia começar, Eleena liderava um projeto de ressocialização de presos acusados de cometerem violência contra mulheres - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Antes da pandemia começar, Eleena liderava um projeto de ressocialização de presos acusados de cometerem violência contra mulheres
Imagem: Arquivo pessoal

Muitos trabalhadores que moravam temporariamente em Delhi ou outras grandes cidades da Índia perderam seus empregos e, para voltar para casa, cruzaram longas distâncias a pé. Foi quando nós, da Tycia, nos demos conta da gravidade da situação e lançamos a campanha #IndiaAgainstCorona.

"Criamos um sistema de empréstimo de cilindros"

Com o passar da pandemia, fomos identificando os problemas e tentando suprir as necessidades da população; desenvolvemos projetos informativos sobre a doação de plasma, arrecadamos kits de EPIs e passamos a ajudar em tarefas administrativas de hospitais, registrando doentes, para que enfermeiras e outros profissionais da saúde pudessem focar no atendimento aos pacientes. Atualmente, temos cerca de 300 voluntários que atuam em várias frentes da ONG.

Eleena carrega um cilindro de oxigênio - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Eleena carrega um cilindro de oxigênio
Imagem: Arquivo pessoal

Agora, por causa da crise de falta de oxigênio que a Índia enfrenta, passamos a fornecer cilindros de oxigênio para as pessoas mais necessitadas. Primeiro fazemos a arrecadação dos botijões de O2 com famílias que possuem unidades extras do vasilhame ou que não necessitam mais do material. Depois, 'emprestamos' os cilindros recarregados por 24 horas para outra família, até que o paciente melhore ou que encontre uma cama de hospital.

Cuidamos do rastreio desses botijões, do transporte e do repasse do material. O maior desafio é recarregar os cilindros com o gás. Nossos voluntários estão na rua dia e noite para tentar reabastecer os galões e, por causa da exposição ao vírus, muitos deles passaram a morar no escritório da Tycia e estão sem ver a família há semanas.

É muito triste quando recebemos a ligação de uma família cancelando o pedido de ajuda porque o paciente morreu.

Voluntário da Tycia confere o funcionamento de um cilindro recém-entregue pela organização - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Voluntário da Tycia confere o funcionamento de um cilindro recém-entregue pela organização
Imagem: Arquivo pessoal

Devido a alta na demanda, tivemos que mudar a estratégia para a 'escolha' de quem receberia o cilindro. No começo, selecionávamos pacientes com nível de oxigênio abaixo dos 70% no sangue — agora, subimos um pouco essa taxa, porque as chances de sobreviver são maiores. Até o momento, este projeto deve ter ajudado cerca de 70 famílias indianas.

"Mortos não têm direito à cremação digna"

Como a maior parte da nossa população é hinduísta, o processo de cremar os mortos faz parte de um ritual sagrado. Os campos onde os corpos são queimados estão superlotados e a maioria deles não passa por todo o processo de cremação, que dura cerca de 24 horas. A situação só piora e estes lugares seguem lotados. Não perdi ninguém próximo para a covid, mas não paro de ouvir relatos dolorosos de amigos que estão perdendo familiares. Sou privilegiada nesse sentido. Minha mãe já foi vacinada, ainda bem.

Ouvi relato de pessoas que estão com corpos de familiares mortos em casa, esperando autoridades virem retirar o cadáver.

Os efeitos da pandemia são cruéis, principalmente para as mulheres. Com escolas fechadas, muitas crianças foram forçadas a se casar para deixarem o lar dos pais. Jovens que perderam o emprego passaram pela mesma dificuldade. Isso sem falar no aumento da violência doméstica por causa do isolamento.

Ao meu ver, as pessoas mais afetadas pela pandemia são aquelas que não possuem oportunidade social e econômica, mas, na atual situação, o vírus está impactando toda a população, independente da classe.

Eu tive covid em março de 2021 e, por ainda estar com anticorpos ativos, me sinto confortável em atuar diretamente na distribuição dos cilindros. A situação é triste, porém é gratificante ver as pessoas fazendo o bem, fico impressionada com a coragem de todos os outros voluntários que nunca se contaminaram e arriscam a própria vida. Estamos tentando o nosso melhor"