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Jurema e Nicinha: diretora leva amor de casal da Rocinha a série da Netflix

Nathália Geraldo

De Universa

13/04/2021 04h00

Jurema e Nicinha aparecem abrindo as janelas da casa na Rocinha, no Rio de Janeiro, em mais um dia comum na rotina do casal. Acompanhamos as duas indo ao postinho de saúde do bairro, cantando parabéns em um aniversário surpresa de 65 anos de Jurema, dividindo os cômodos e as conversas cotidianas com as crianças e os outros adultos da família.

Negras, lésbicas, praticantes da umbanda, as duas estão juntas há mais de 40 anos e têm a história de amor contada em um dos episódios da série documental "Meu Amor - Seis Histórias de Amor Verdadeiro", que estreia nesta terça-feira (13) na Netflix.

Com seis episódios, três deles dirigidos por mulheres e um codirigido por uma mulher, a série acompanha a vida de casais na Índia, no Japão, Coreia do Sul, Espanha, Estados Unidos e Brasil. O daqui foi documentado pela diretora Carolina Sá, que deu entrevista para Universa logo após termos assistido ao episódio da história do casal brasileiro.

Mulher branca, Carolina conta que desde o início do projeto buscava um casal que representasse a resistência pelo amor — verdadeiro, pois vivenciado até nas trivialidades do dia a dia, mostra o documentário — e que sobrepusesse "muitas formas de resistência no Brasil, para além da história amorosa".

"Queria um casal homoafetivo e que representasse boa parte das pessoas que resistem no país, em todos os sentidos, das mulheres, das pessoas de regiões de favela, de relação homoafetiva. E eu conversei com a Netflix para ser um casal de crença de matriz africana. A gente teve uma pesquisadora maravilhosa, que as encontrou", explica.

Nicinha e Jurema - Divulgação/Netflix - Divulgação/Netflix
Moradoras da Rocinha, Nicinha e Jurema vivem relacionamento há 43 anos; série da Netflix conta história de seis casais
Imagem: Divulgação/Netflix

As duas se conheceram na Rocinha; Jurema conta que tinha por volta de 20 anos, enquanto Nicinha, uns 14. "Teve uma briga dela no samba e eu achei interessante: como uma menina, tão novinha, poderia levar tanta gente no peito?". Jurema trabalhou a vida inteira como empregada doméstica, função que Nicinha ainda exerce.

Elas são um casal que representa o Brasil na potência que precisa ser mostrada. Nicinha e Jurema personificaram na história delas um desejo meu e da equipe.

Com a câmera a postos para gravar os momentos dentro e fora de casa (o episódio foi gravado em 2019) do casal, o que Carolina e a equipe nos mostram são as perspectivas subjetivas e as experiências literais de duas mulheres que se amam e dividem perrengues e conquistas com a mesma cumplicidade. As duas contam que se casaram em uma noite de São João, pulando fogueira. Foi quando fizeram as juras de amor: "De ficar juntas até que a morte nos separasse", relembra Jurema.

Nos dias flagrados pela documentarista, há festa, falta de água na favela, a construção de uma casa no meio do mato, o sonho de aposentadoria do casal, imagens dos rituais no terreiro, crianças brincando na sala, um cachorro caramelo. Confira trechos da entrevista que Universa fez com Carolina Sá abaixo. As protagonistas (assim como os dos episódios) não deram entrevistas à imprensa.

UNIVERSA: Como você vê a representatividade da diversidade, com pessoas negras, LGBTQIA+, gordas, mulheres, no audiovisual?
Carolina Sá:
Cada vez mais as histórias estão sendo contadas. Outro dia, vi um curta lindo de um documentarista negro sobre escravidão e como isso é contemporâneo. Eu vejo, em vários festivais do Brasil, esses temas serem representados. E é um avanço, ainda mais no documentário.

carolina sá - Divulgação/DuHarte Fotografia - Divulgação/DuHarte Fotografia
Carolina Sá dirigiu o episódio brasileiro da série "Meu Amor: Seis Histórias de Amor Verdadeiro", na Netflix
Imagem: Divulgação/DuHarte Fotografia

E por trás das câmeras?
Ainda é pouco. Estamos caminhando para isso, existem mais diretoras mulheres brancas do que negras, apesar de terem muitas.

E há os técnicos. A partir do momento em que essas pessoas forem tomando esses lugares, a gente vai ter mais diálogo. Porque acho que o documentário é esse lugar do encontro. O primeiro documentário que eu fiz foi sobre a Santeria, em Cuba, depois um sobre vodu no Haiti... Eu sempre me interessei pelas culturas talvez chamadas periféricas porque, a partir desse encontro, as potências de ambos vêm à tona. Mas ainda temos muito que caminhar.

Existem muitos filmes LGBTQIs têm muito hoje em dia, sendo feito por pessoas que se veem representadas. E isso só enriquece. Sempre penso que o documentário é essa porta para a experimentação. Por isso a gente tem ele como algo coisa tão forte no Brasil.

O que você, sendo uma mulher branca, sentiu estando tão próxima a Jurema e Nicinha?
Quando o documentário chegou na minha vida, já tinha feito os documentários com assuntos que tangenciavam isso. Sempre me liguei em religiões da matriz africana. Era um foco de interesse pessoal e profissional. E, meu primeiro longa, "Construção", é um filme de amor.

Meu foco sempre foi de afeto e de mostrar a potência dos lugares. No Haiti, talvez o lugar mais pobre da América Latina, eu não filmei a pobreza, filmei o vodu rock, que é um ritmo maravilhoso.

Eu sou uma mulher branca, e tenho dois filhos pretos. Fui casada com um homem negro. Aquele universo em alguns lugares me tangenciava, mas ao mesmo tempo eu não sou uma mulher negra, nem da favela. O que eu tive de aprendizado foi ver uma resistência que eu nunca precisei ter. E isso é para uma vida. Para entender a dimensão do que é essa mulher brasileira: negra, periférica, empregada doméstica que representa boa parte do Brasil.

Então, foi muito rico para mim, como experiência humana e profissional. Foi um ano convivendo com elas. Meu foco era apresentar a beleza e a potência disso. Porque o problema já está dado: a gente sabe que a favela é perigosa, que é pobre, que tem problema de lixo, de tiro, de escassez. Queria muito mostrar como, com tantas adversidades, brota tanta beleza.

nicinha e jurema - Divulgação/Netflix - Divulgação/Netflix
Casal é retratado em momentos cotidianos: "Queria um casal homoafetivo e que representasse boa parte das pessoas que resistem no Brasil", diz diretora
Imagem: Divulgação/Netflix

Que impacto você imagina que o documentário terá nas pessoas, principalmente neste período em que estamos distanciados por questões de saúde?
Acho impressionante estar vindo nesse momento em que a gente está vivendo uma tragédia humana mundial. O Brasil no epicentro da tragédia, em muitos sentidos.

Um filme que fala de amor entre pessoas mais velhas, quando a gente está vendo os entes queridos indo embora... Isso tem uma potência impressionante. É como uma faísca de esperança, do que significa cuidar dos afetos. No caso do episódio brasileiro, tem as camadas. Falar do afeto de duas mulheres negras, periféricas, negras, umbandistas.

São camadas atacadas por todos os lados... Há uma ideia muito bonita, que eu acho que é brasileira: "A nossa potência maior nasce nas brechas do que é possível". Para mim, a Nicinha e a Jurema representam isso.

O amor que elas têm pela família, pela religião... Era muito importante mostrar. É uma brasilidade que nos fortalece e que também é atacada.

O audiovisual é um meio machista? O que você já passou que espera que outras mulheres não passem?
Como mulheres, estamos em processo de nos potencializar. Estamos mais fortes na vida particular e para o mundo. Isso reverbera no cinema.

Com certeza, cada vez temos mais mulheres, e o documentário é um lugar muito fértil. Como ele proporciona mais experimentações, as mulheres ficam mais livres, até para fazer filmes pessoais. Temos grandes cineastas e documentaristas mulheres, o que há 30, 40 anos era muito mais difícil. A gente está dando passos para trás em muitos sentidos, mas estamos evoluindo em outros. É que em alguns lugares, já é "nenhum passo atrás".

Embora ainda a gente sofra machismo e misoginia, que é perigosíssima e mais difícil de entender, as mulheres hoje montam suas equipes para se sentirem confortáveis.

Sua equipe para o episódio foi feminina?
Praticamente sim, mas ainda é uma equipe hibrida. Eu gosto de trabalhar em alguns setores, como na montagem, com mulheres. E na fotografia, homens. Gosto de equipe assim, e espero que tenham cada vez mais negros, periféricos, porque aí mais ricas elas são.

As mulheres e os grupos minorizados estão aumentando nas artes por que temos muito ainda a dizer?
A gente tem muito a dizer, por isso que tem mais coisas feitas por realizadores LGBTQIs, negros. Ainda tem muito o que se falar. As coisas não se esgotam, porque as experiências pessoas não se esgotam. E isso é lindo.

E quanto mais essas coisas vieram de lugares da fala, da expressão e de experiências próprias, mais elas nos movem, enquanto humanidade mesmo. É vendo a experiência do outro que a gente se entende. Nicinha e Jurema foram um presente, um encontro abençoado.