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Negra, lésbica, periférica: morte de Luana Barbosa faz 5 anos sem resolução

Luana Barbosa morreu cinco dias após a acusação de que havia sido espancada por policiais militares em uma abordagem - Pedro Borges via Alma Preta
Luana Barbosa morreu cinco dias após a acusação de que havia sido espancada por policiais militares em uma abordagem Imagem: Pedro Borges via Alma Preta

Júlia Warken

Colaboração para Universa

13/04/2021 04h00

No dia 13 de abril de 2016, em Ribeirão Preto (SP), morreu Luana Barbosa dos Reis, aos 34 anos. Negra, lésbica, periférica e mãe, sua imagem e seu nome viraram símbolo de mobilização social quase que instantaneamente.

Isso porque, dias antes da data do falecimento, pessoas ligadas ao movimento negro e lésbico do estado de São Paulo passaram a conhecer aquela mulher até então anônima: em 8 de abril correu a notícia de que Luana havia sido espancada por policiais militares em uma abordagem. O motivo? Ela se recusou a ser revistada por agentes do sexo masculino, levantando a blusa para mostrar que era mulher.

A ativista Fernanda Gomes conta que soube da morte de Luana durante uma reunião de lésbicas negras que faziam parte da organização da Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais de São Paulo. Nascia ali a Coletiva Luana Barbosa. "Durante uma reunião veio a notícia de que ela tinha sido assassinada e era uma mulher lésbica, negra, mãe, periférica... enfim, todos esses marcadores sociais que são os nossos marcadores também. A morte da Luana Barbosa era também a nossa morte em vida". Mobilizadas, essas mulheres passaram a se organizar junto à família de Luana, a fim de tornar o caso visível e de pressionar o poder público.

Luana Barbosa ilustra - Ilustração de Lê Nora - Ilustração de Lê Nora
Em maio de 2016, a ONU também se posicionou sobre a morte de Luana, pedindo por uma investigação imparcial
Imagem: Ilustração de Lê Nora

Paralelamente, foi criada em Ribeirão Preto a campanha Nenhuma Luana a Menos. Em maio de 2016, a ONU também se posicionou, pedindo por uma investigação imparcial. "A morte de Luana é um caso emblemático da prevalência e gravidade da violência racista, de gênero e lesbofóbica no Brasil", diz o comunicado da instituição.

No mês de fevereiro de 2020, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu que os três policiais acusados deveriam ir a júri popular. Os réus André Donizete Camilo, Douglas Luiz de Paula e Fábio Donizete Pultz respondem por homicídio qualificado, motivo torpe, emprego de meio cruel e recurso que impossibilitou a defesa da vítima. Após a chamada sentença de pronúncia - que é quando um juiz decide que há indícios de crime doloso contra a vida - a defesa dos réus entrou com recurso, pedindo a anulação do julgamento.

Até o momento, a Justiça não decidiu se aceita ou não o recurso e os policiais aguardam em liberdade. Em nota, a Polícia Militar informou que Douglas Luiz de Paula transferiu-se para a reserva remunerada e que os outros dois réus estão na ativa. Eles seguem trabalhando em Ribeirão Preto, mas foram afastados da atividade operacional.

Luana morreu em decorrência de espancamento

Luana Barbosa - Reprodução/EPTV - Reprodução/EPTV
A causa morte de Luana Barbosa foi isquemia cerebral e traumatismo cranioencefálico
Imagem: Reprodução/EPTV

A morte de Luana Barbosa foi inicialmente investigada pela Justiça Militar, num processo arquivado no início de 2017. Em maio de 2018, o Ministério Público denunciou o caso ao Tribunal de Justiça e, assim, o processo começou a tramitar na Justiça comum.

A família, o Ministério Público e os advogados que dão assistência ao MP apontam que Luana morreu em decorrência de espancamento. No dia 8 de abril, ela levava o filho de 14 anos a um curso de informática quando foi abordada pelos três PMs que hoje são réus. Mãe e filho estavam de moto e, no caminho, Luana parou o veículo em frente a um bar para conversar com um amigo. O bar fica a cerca de 300 metros da casa dela, no bairro Jardim Paiva, e a abordagem aconteceu ali, em frente a diversas pessoas.

Em entrevista para Universa, Dina Alves, advogada que trabalha junto ao MP, disse que Luana recebeu o primeiro chute de um dos policiais assim que pediu para ser revistada por uma mulher - o que é algo previsto em lei. "Desesperada, ela jogou o capacete no chão, tirou a blusa e mostrou os seios para convencer os agentes de que era mulher, deu um soco na boca de um dos policiais e chutou o pé do outro. Nesse momento, iniciou-se ali uma sessão de espancamento contra ela, sob os olhos do seu filho".

Logo após, Luana foi colocada na viatura e levada à delegacia. Lá, um procedimento criminal foi aberto contra ela, por desacato e lesão corporal a um dos policiais.

Dina afirma que a família de Luana foi impedida de entrar na delegacia naquela noite. "Como eles sabiam que tinham feito uma barbaridade, não queriam deixar a família entrar", acusa. Após Luana ser liberada, a família gravou um vídeo em que ela aparece bastante machucada e desorientada, sentada no chão. Nas imagens é possível ver que Luana nem consegue abrir um dos olhos, que está inchado. "'Mão pra trás e cabeça baixa', aí eu comecei a apanhar já", diz Luana no vídeo, relatando a abordagem. Ela morreria cinco dias depois, por isquemia cerebral e traumatismo cranioencefálico.

A defesa dos policiais alega que não houve espancamento e que, portanto, não existe ligação entre a abordagem policial e a morte de Luana. Em conversa com Universa, Júlio César de Oliveira Guimarães Mossin, um dos advogados de defesa dos policiais, contra argumenta alguns fatos. "Eu já começo dizendo que a família não aceitou a condução dela para uma delegacia, não aceitou a situação de ela ter sido abordada", diz e continua: "Envolve muito mais coisa, por exemplo pessoas aí que tiveram ligação, que tem ligação com o [mundo do] crime, que entraram no meio disso tudo".

O advogado alega que a família de Luana teria ligação com uma pessoa vinculada ao mundo do crime. Ele diz que não pode citar nomes. "Está no processo", afirma. Universa não teve acesso aos autos do processo, pois esse não é um documento público.

Quanto ao vídeo em que Luana aparece claramente machucada, o advogado diz que as lesões foram causadas pela própria Luana, enquanto se debatia na viatura, tentando impedir que a porta do veículo fechasse. "Inúmeras vezes ela bateu a cabeça ali. Inclusive, isso foi narrado pela testemunha presencial e corroborado por outros policiais militares, que foram apoiar os acusados no local".

Em contrapartida, Dina Alves diz que a desmoralização da figura de Luana, de sua família e de seu bairro é um artifício usado pela defesa nas audiências e em declarações à imprensa.

Dina aponta que outra estratégia da defesa é abordar os antecedentes criminais de Luana, que esteve encarcerada vários anos antes de morrer. "A Luana, não era procurada e não 'devia' nada para a Justiça. [...] Ela tinha, sim, antecedentes, como alguns dos policiais que eu abordei na audiência (ainda que antecedentes policiais administrativos, com 'prisão' no quartel). A irmã e a mãe não são acusadas [no processo], os policiais, sim. Aliás, nem Luana está sendo julgada. Ela está no processo na condição de vítima e ainda que os policiais fiquem presos, a 'pena' dela ainda foi a maior: a morte", frisa Daniel Rondi, advogado que também atua como assistente do Ministério Público.

Caso vai a Juri Popular

Esse embate de narrativas rendeu sete audiências de instrução entre julho de 2018 e agosto de 2019. Ao final, a juíza Marta Rodrigues Maffeis, da 1ª Vara do Júri e das Execuções Criminais, convenceu-se de que há indícios suficientes de homicídio. Assim, cabe ao júri popular decidir sobre a condenação ou absolvição dos réus. "Os acusados teriam espancado a vítima, causando-lhe intenso, prolongado e desnecessário sofrimento físico e mental. Finalmente, existem indicações de que a vítima teria sido subjugada por três homens armados, estando estes, portanto, em superioridade numérica e de armas, recurso este que impossibilitou sua defesa", diz a juíza.

Para Dina Alves, o júri popular representa um enorme desafio. "A gente está num cenário que não é favorável. Um cenário de assustador incremento da violência de gênero, um cenário bolsonarista, um cenário de aprofundamento do racismo e da violência contra a população LGBTQI+".

Mesmo assim, tanto Dina quanto Fernanda Gomes, da Coletiva Luana Barbosa, acreditam que a sentença de pronúncia já representa uma vitória. "Eu pontuo que isso aconteceu por causa da pressão popular", analisa Fernanda. Dina concorda, dizendo que "foram várias lideranças negras que se posicionaram e que fizeram legível o genocídio contra a Luana Barbosa. Isso foi fundamental".

Em se tratando do desfecho esperado para o caso, Fernanda frisa que é anticárcere, ou seja, não vê o encarceramento de pessoas como solução e sim como problema. "Quem assassinou Luana Barbosa foi o Estado, foi o braço armado do Estado. E quando isso acontece, quem é que responde? Porque a gente sabe que nós, sendo culpados ou não, vamos responder criminalmente por qualquer coisa, inclusive roubar um açúcar no mercado. E quando os agentes do Estado cometem crimes contra a humanidade, contra mulheres negras, quem é que paga essa conta? É por isso que a gente reafirma a sede de justiça".

Fernanda acredita que a família deveria ser indenizada e merece uma resposta. "Tem um sentimento de revolta, um sentimento de dor, de que essas situações não podem ficar impunes e essa família tem o direto de saber 'sua filha não estava louca, sua mãe não estava louca. Ela realmente foi espancada e morreu por isso'".

Procurada por Universa, a família de Luana Barbosa dos Reis informou que não quer falar com a imprensa neste momento. Também entramos em contato com a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, que não se manifestou sobre o caso, dizendo que cabia ao Tribunal de Justiça falar do assunto. O TJSP, por sua vez, disponibilizou as informações solicitadas e declarou que "não se manifesta sobre questão jurisdicional", ou seja, não emite opinião sobre a tramitação dos processos e as decisões tomadas.