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Caso Henry: como identificar que uma criança sofre abuso ou maus-tratos?

Há quatro tipos de violência doméstica contra crianças: física, psicológica, sexual e por negligência. - fiorigianluigi/Getty Images/iStockphoto
Há quatro tipos de violência doméstica contra crianças: física, psicológica, sexual e por negligência. Imagem: fiorigianluigi/Getty Images/iStockphoto

Júlia Warken

Colaboração para Universa

07/04/2021 04h00

O caso do menino Henry Borel, morto em 8 de março, reacendeu o debate sobre maus tratos a crianças no Brasil. Ainda não se sabe o que exatamente levou o menino de 4 anos a perder a vida, mas a perícia já revelou a causa da morte: hemorragia interna e laceração hepática causada por uma ação contundente. Ou seja, há indícios de violência física.

Muito também tem se falado sobre o comportamento de Henry pouco antes de falecer. Filho de um casal separado, ele sofria para despedir-se do pai quando precisava retornar para o apartamento onde morava com a mãe e o padrasto. Nervoso, chorava muito e chegou a vomitar. Na segunda-feira (5), a polícia passou a tratar o vereador e médico Dr. Jairinho (Solidariedade) e Monique Medeiros, mãe de Henry, como investigados pela morte do menino.

Mas, afinal, quais são os sinais de que uma criança está sendo vítima de agressão? Universa conversou com Cátula Pelisoli, doutora em Psicologia e produtora de conteúdo do Canal Proteja no YouTube, e Jean Von Hohendorff, professor doutor em Psicologia e coordenador do grupo de estudos VIA Redes, que pesquisa sobre violência contra crianças e adolescentes na faculdade IMED, de Passo Fundo (RS).

Jean aponta que há quatro tipos de violência doméstica contra crianças: física, psicológica, sexual e por negligência. Aqui vamos nos atentar aos indícios de violência física e psicológica.

Sinais físicos

É impossível falar a respeito de agressão física sem abordar o que há de mais básico em se tratando de sinais: hematomas e dores pelo corpo. Crianças caem e batem em móveis o tempo todo, mas hematomas recorrentes e muitas queixas a respeito de dores devem acender o sinal de alerta.

Para além do óbvio, o corpo da criança pode apresentar outros sinais físicos, ligados a stress e ansiedade. "A ansiedade intensa pode causar vômito, tontura, náuseas e até taquicardia. Isso tudo é um indicativo da gravidade da ansiedade. Já não é mais uma ansiedade leve", aponta Cátula. Mudanças na alimentação (não conseguir comer ou comer demais) e no sono (insônia e/ou sono agitado) são outros sinais citados pela psicóloga.

Ocorrências atípicas envolvendo urina e fezes também podem ter ligação, segundo a psicóloga. A criança já não fazia mais xixi na cama e, de repente, o problema volta a acontecer? Sinal de alerta. Na escola, ela fez cocô na calça, sendo que já havia aprendido a usar o banheiro? Também é algo a ser averiguado.

Sinais comportamentais e emocionais

"Mudanças no padrão de comportamento da criança podem indicar sinal de maus tratos", resume Jean. Isso é bem amplo, mas há alguns indícios centrais, segundo os especialistas.

Preste atenção a atitudes de recusa. "Não quero ir a tal lugar, não quero ver tal pessoa. Quando há esse tipo de rejeição é preciso investigar a causa", aponta Cátula. Essa recusa não é necessariamente verbalizada. Se uma criança sempre dá as costas para determinado adulto e/ou desvia o olhar dele constantemente, isso também indica recusa.

É importante compreender que rejeição e medo andam juntos em casos assim. O que pode ser interpretado como birra em atitudes de recusa e choro muitas vezes está relacionado ao medo.

Quando uma criança é agressiva com seus colegas e amigos isso pode ser mais um indicativo. "O comportamento agressivo e violento é aprendido", ressalta Cátula. Se a criança é testemunha ou vítima de violência física em casa, ela pode reproduzir isso fora do ambiente doméstico. "A criança percebe aquilo ali como uma forma de resolver problemas, de lidar com determinadas situações", completa a psicóloga.

Da mesma forma, se existem situações de humilhação verbal no seio familiar, isso também pode ser reproduzido. "Ela está ouvindo aquilo [ofensas e xingamentos] e percebe que acontece num momento de raiva, então pode acabar usando o mesmo recurso quando convive com outras pessoas".

O comportamento em relação à autoimagem também dá pistas de agressão. "A criança pode desenvolver uma autoimagem pobre, por assim dizer. Ela se vê como uma pessoa que não tem valor". Cátula frisa que, quando é adjetivada de maneira pejorativa, a criança acredita no que está ouvindo e internaliza facilmente aquilo. "Muitas vezes a gente atende pessoas adultas que se sentem dessa forma a vida inteira. 'Eu sou uma inútil, porque minha mãe - ou meu pai - já dizia desde sempre que eu não servia para nada e só atrapalhava'", exemplifica

Isso pode se manifestar num comportamento retraído, que nem sempre é notado. "Na escola, por exemplo, um comportamento de agressividade aparece mais, pois gera uma situação que precisa ser manejada. Enquanto isso, a criança retraída está lá quietinha e acaba sendo menos vista", frisa Cátula.

Sinais cognitivos

"No ambiente escolar, uma criança que tem uma queda de rendimento pode estar sendo vítima de alguma situação de violência", aponta Jean. O professor explica que isso acontece pois o medo e a ansiedade das vítimas não desaparecem quando a criança está longe do agressor.

"Quando vai para a escola a criança pode lembrar da agressão. Isso gera medo e ansiedade e afeta a concentração. Eu não consigo me concentrar na aula, porque eu tenho medo que aconteça de novo, eu preciso evitar que isso aconteça ou preciso estar preparado". A dor da lembrança se soma a um estado de hipervigilância e isso afeta a capacidade cognitiva.

Mas, afinal, o que configura maus tratos? Palmada é violência doméstica?

Os especialistas ouvidos por Universa são muito diretos ao dizer que castigos físicos não podem mais ser tratados como forma de educação. Jean é da opinião de que as pessoas não costumam pensar a fundo sobre tudo o que acontece antes de um caso envolvendo o homicídio de uma criança se tornar público. Para ele, a violência física contra crianças ainda é naturalizada no Brasil, por mais que assassinatos como os de Isabella Nardoni e o de Bernardo Boldrini gerem enorme comoção. Cátula concorda com o colega. "A gente carrega essa herança de considerar a violência física como um recurso possível na educação das crianças. Mas hoje se sabe o quanto isso é prejudicial para o desenvolvimento emocional".

Além disso, o castigo físico é crime no Brasil. Em vigor desde 2014, a Lei 13.010 alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelecendo que "as crianças e os adolescentes têm o direito de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante". Ela é conhecida como Lei da Palmada ou Lei Menino Bernardo.

E o que seria considerado "tratamento cruel e degradante", que também está previsto na lei e diz respeito à violência psicológica? "Quando você vê a criança se sentindo inferiorizada, desvalorizada e humilhada", diz Cátula. "Dar limites à criança é necessário e fundamental, mas não é desrespeitando ela que a gente vai ensina-la a respeitar os limites", completa a psicóloga.

Como devo agir quando suspeito que uma criança está sendo agredida em casa?

"É preciso sempre acreditar na criança. E ao perceber um sinal, você deve se mostrar disponível para ouvir a criança. 'Olha, estou notando que você está mais quietinho, quero saber se está acontecendo alguma coisa. Quero que você saiba que pode contar comigo, que eu estou aqui para te ouvir, mesmo se alguém te pediu para guardar segredo, por mais que você goste dessa pessoa, você tem que pedir ajuda'", diz Jean. É importante que essa conversa aconteça de maneira que criança compreenda e o professor sugere que o adulto module o tom de voz, que olhe no olho dela enquanto fala e que transmita tranquilidade.

Jean também chama a atenção para o Artigo 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que diz o seguinte: "Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais". Isso significa que, mesmo quando existe apenas uma suspeita de violência, qualquer cidadão pode - e deve - notificar o Conselho Tutelar. É possível fazer isso de maneira anônima através do Disque 100.

"Todos nós somos responsáveis pelas crianças. Isso precisa estar bem claro. Um pai e uma mãe não são donos do filho. A criança não é um objeto de propriedade dos pais. Desde que foi criado o Estatuto da Criança e do Adolescente e, antes disso, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, a gente tem isso como paradigma. A criança é um sujeito de direitos", frisa Cátula. A psicóloga diz que, na prática, isso significa que todos nós temos o dever de denunciar formalmente a violência contra crianças. "Para que instituições como o Conselho Tutelar funcionem, elas precisam de informação, elas não têm como adivinhar. Todas as crianças são de responsabilidade da sociedade inteira", finaliza.