Topo

Sem shows, Letrux lança livro: "a incerteza com a pandemia é desesperadora"

Letrux: "O contrário acontece no Brasil: quem não deveria ser aplaudido é aplaudido, quem deveria ser citado não é" - Divulgação
Letrux: "O contrário acontece no Brasil: quem não deveria ser aplaudido é aplaudido, quem deveria ser citado não é" Imagem: Divulgação

Júlia Flores

De Universa

06/04/2021 04h00

Letícia Novaes, 39, lembra a previsão que recebeu do primeiro astrólogo com quem se consultou, aos 22 anos: "Ele disse que eu seria famosa, mas não popular. E estava certo". A cantora de 39 anos, conhecida como Letrux, já se apresentou em grandes festivais como o Lollapalooza, mas ainda tem um público mais restrito, nunca estourou pelo Brasil.

Após suspender a agenda de shows por prazo indeterminado, a autora do hit "Ninguém Perguntou por Você" decidiu dedicar-se à literatura e finalizar uma obra que já estava produzindo desde 2017 "Tudo que Já Nadei", livro que acaba de lançar.

"Tudo que Já Nadei" dá continuidade ao que Letrux explorou em seu primeiro livro, "Zaralha: Abri Minha Pasta", com reflexões tragicômicas de dilemas do cotidiano. "O livro chegou um ano depois de eu ter lançado o CD 'Letrux aos Prantos', que já falava sobre as dificuldades da nossa sociedade. Inclusive teve fã que não acreditou que o álbum tinha sido feito antes da pandemia. O Brasil está ferrado desde 1500, gente", diz ela a Universa.

Se "Letrux aos Prantos" já embalava a angústia de nossos tempos, "Tudo que Já Nadei" (ed. Planeta) é uma mistura de "textões, poemas e aforismos" com referências à pandemia e indiretas à dificuldade de se manter são em tempos como o que vivemos.

Isolada com o namorado na casa de férias da família, no estado do Rio, a carioca diz estar "mofando" longe dos eventos e do público. Nesta entrevista para Universa, a cantora fala de seu processo de escrita, da saudade dos palcos, do medo do envelhecimento e de suas inspirações no feminismo.

Aos 39, Letrux diz ter medo de um dia ser julgada pelo público por causa de sua idade - Divulgação - Divulgação
Aos 39, Letrux diz ter medo de um dia ser julgada pelo público por causa de sua idade
Imagem: Divulgação

Universa - Como está sendo essa sua fase voltada a escrever?

Letrux - Eu me considero mais escritora do que cantora, porque meus pensamentos enveredam mais para o lado da literatura do que da música. É que a música me raptou, mas tenho muita dificuldade de ser só intérprete. Inclusive, a maior parte das canções que canto são de minha autoria. A letra é uma coisa importante para mim. Não sou uma cantora técnica, perfeita, 'afinadérrima'. Minha emoção não passa pela busca da excelência; a minha busca do canto tem a ver com emoção, com sensibilidade, entrega. Quando eu escrevi aquilo, fica mais fácil de atingir esse estado.

Quanto tempo levou para concluir "Tudo Que Já Nadei"?

Em março de 2020 veio o convite da Editora Planeta para publicar o livro e isso me deu muito orgulho. Mas isso aconteceu quando a pandemia tinha acabado de começar, então eu pedi um tempo. Na verdade, esse livro já existe desde 2016, só que ele passou por várias transformações. Seria muito louco lançar um livro em 2021 sem fazer nenhuma menção à atual situação que vivemos.

Quando você começou a escrever nem imaginava que chegaríamos a quase 4 mil mortes por covid-19 em um dia.

Pois é! Em um dos textos do livro eu digo que 'é um dia horrível, porque mil pessoas morreram'. Agora quase 4.000 pessoas morreram. É desesperador. Estamos muito abandonados, largados. Quando eu vejo que em alguns países pessoas com 30 anos já estão sendo vacinadas, eu, no alto dos meus 39, fico com sensação de abandono. Como boa capricorniana, tenho sonhos e planos. Tive um ano de agenda rasgada, um segundo ano sem agenda e fico desesperada de não ter ideia de quando as coisas vão melhorar.

O contrário acontece no Brasil: quem não deveria ser aplaudido é aplaudido, quem deveria ser citado não é. Esse governo é genocida, não é exagero falar isso.

Está sentindo falta do palco?

Muita. São dias de dor física. Quando chega sexta ou sábado, penso que era para eu estar suando, para as pessoas estarem me abraçando. No início da pandemia foi tudo tão esquisito que nem falta senti. Agora sinto que tem algo mofando dentro de mim. Tento compor, fazer lives, encontros via Zoom, mas não é a mesma coisa.

Isso está tirando o seu sono?

Eu nunca dormi bem, desde 1982. Minha mãe fala que eu era um bebê insuportável porque eu não dormia. Mas a Natércia Pontes, uma escritora maravilhosa que é minha amiga, fala 'os insones amam dormir, eles só não conseguem'. Eu amo dormir, era a primeira pessoa a ir embora das festas, com vontade de sonhar. Na pandemia meu quadro piorou.

Tem os dias de remédio, dias de vinho — mas os dias que mais consigo dormir são aqueles em que faço exercício físico. É uma fritação, parece que o peso do dia inteiro aparece na hora de botar a cabeça no travesseiro.

Você adquiriu novos hábitos, entrou em alguma 'onda' da pandemia como o skincare?

A única onda da pandemia que eu entrei foi a de fazer pães artesanais. Eu sou meio relaxada, passo protetor solar no rosto, mas tem dia que não. Me olho no espelho e penso: 'Quando os shows voltarem, vão ser dois anos longe dos palcos e você terá 40 anos. Caraca, Letícia, você envelheceu'. Mas tudo bem também... Vejo fotos antigas e acho que estou mil vezes melhor do que quando eu tinha 20 e poucos.

Colágeno é importante, sim, mas não é melhor do que a sagacidade, o charme e a sabedoria que a idade traz. Colágeno é só colágeno, não mantém elo.

Novo livro de Letrux "Tudo que já nadei" - Divulgação - Divulgação
A cantora acaba de lançar "Tudo Que Já Nadei" (Ed. Planeta)
Imagem: Divulgação

Mas você tem medo de envelhecer?

Não tenho medo de envelhecer, porque tenho duas avós vivas e minha mãe é uma pessoa muito ativa também, aos 67. Claro, ela não fuma, não bebe, faz yoga há 40 anos, tem uma vida diferente da minha.

Não tenho medo de envelhecer, tenho medo do mundo ser etarista comigo, de falarem que eu sou uma velha louca; sei que muita gente não tem esse preconceito e vai me acompanhar independente do número que o calendário designa a mim.

Fico irada com pessoas que não percebem que 'We all are going to die' (nós todos vamos morrer)... Tenho interesse em envelhecer igual a Patti Smith, sabe? Setentona que viaja, lança livro, se entrega, é curiosa, ativista.

Está sendo difícil ficar 24 horas por dia trancada com o namorado?

Eu e Thiago moramos juntos há quatro anos e namoramos há oito. É um privilégio estarmos em um lugar grande, onde cada um tem o próprio quarto. Acho que a gente tem um espaço que ajuda a individualidade. Somos um casal 'sozinho'.

Tenho medo de relações simbióticas e sinto que sempre tive sorte no amor — vivi histórias bonitas. Acho que na adolescência passei por algumas situações estranhas com namorados, mas naquela época não tínhamos claro o que era o feminismo, quais eram os nossos direitos, o que era o machismo. Agora ter um relacionamento abusivo ou tóxico? Não, nunca tive.

Sente que o feminismo passou por uma transformação de um tempo para cá?

Percebo que de 2015 para cá o feminismo está muito mais forte. Eu mesma, que aprendi na prática o que é feminismo, abracei ainda mais a causa de uns anos para cá. Antes eu tinha noção, ia para algumas marchas, mas a luta ainda não estava entranhada em mim. Para mim, hoje essa é uma preocupação grande — e aí entra o debate racial e da diversidade sexual também.

Minha banda é totalmente LGBTQIA+. Essa é a nossa verdade. Cantamos letras e defendemos bandeiras que vêm da gente. É muito bonito ver na plateia que quem banca a minha música é a comunidade gay. Busco o equilíbrio e a justiça. Tenho um anseio por um mundo justo; no mundo atual parece que é um pedido muito caro.

No livro você fala sobre a previsão de um astrólogo de que você seria famosa, mas não popular. Ele acertou?

Totalmente, esse astrólogo acertou quase tudo. Fiz a consulta quando tinha 22 anos e naquela época eu nem me sentia artista. Não achava que nada disso seria minha vida. Hoje em dia concordo com ele, porque quando vejo o tipo de coisa muito popular no Brasil, não acho que meu som se encaixa. Hoje em dia o sertanejo universitário, o pop, estão sendo muito consumidos e eu não faço esse tipo de coisa — e tudo bem quem faz, mas não é o que me emociona. Arte para mim tem a ver com emoção e não ambição. O "Climão" foi lançado em 2017, "Letrux aos prantos" chegou dia 13 de março, no começo do lockdown. Claro que a pandemia sublinha coisas horríveis, mas o disco traz observações de quem é atenta ao mundo há muito tempo.

Quem te inspira na vida, no feminismo, na escrita?

Nina Simone me inspira na vida e no feminismo. Ela é uma deusa, mexe em um lugar em mim que quando eu vejo já estou derretendo. A própria Patti Smith, Bethânia, Rita Lee, Marina Lima, Janis Joplin... são pessoas que eu me ajoelho sem pestanejar. Na literatura sou devota de Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Adélia Prado, Silvia Plath — inclusive sou mais da Silvia do que da Virginia Woolf. Hilda Hilst é para todos os dias que eu me perco. No ano passado, por causa do movimento #BlackLivesMatter, fiquei mais atenta ao feminismo negro, a poeta Audre Lorde me inspira muito. E Djamilla Ribeiro foi um acontecimento na minha vida, abriu minha cabeça.