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Por "banalizar" denúncia, Justiça condena bar a indenizar vítima de estupro

Em 2019, a produtora Luciana Rocha, 45, sofreu violência sexual de William Failla no Vila Seu Justino, em SP, e foi chamada de "mentirosa" - Arquivo pessoal
Em 2019, a produtora Luciana Rocha, 45, sofreu violência sexual de William Failla no Vila Seu Justino, em SP, e foi chamada de "mentirosa" Imagem: Arquivo pessoal

Mariana Gonzalez

De Universa

31/03/2021 04h00

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu que o bar Vila Seu Justino, em São Paulo, deverá indenizar em R$ 20 mil a produtora musical Luciana Rocha de Sousa, 45, que, em 2019, denunciou ter sido vítima de estupro dentro do estabelecimento.

Na noite de 1º de maio daquele ano, a produtora assistia no local à apresentação do marido, que é músico, quando William Roberto Leone Failla se aproximou e a cutucou diversas vezes no ombro; diante da recusa dela em conversar, o agressor disse palavras de baixo calão e, por fim, introduziu o dedo de forma violenta em sua vagina.

Após investigação, Leone Failla foi condenado na esfera criminal e chegou a ficar preso durante nove dias. Ele foi solto após sua defesa conseguir uma medida cautelar.

Agora, o agressor também foi condenado na esfera cível e terá que indenizar a vítima em R$ 30 mil.

Universa teve acesso à decisão do desembargador Milton Paulo de Carvalho Filho, do TJ-SP. No documento, ele reconhece que, em casos de violência sexual, a palavra da vítima tem valor de prova. E afirma que o estabelecimento falhou ao não acolher Luciana quando ela procurou ajuda e também por ter "banalizado" a denúncia.

Palavra da vítima vale como prova

A decisão do caso em segunda instância, fixando valor total de R$ 50 mil de indenização para a vítima, foi publicada em 18 de março. Antes disso, em primeira instância, a Justiça havia fixado valores de indenização mais baixos: R$ 15 mil a serem pagos por Leone Failla e R$ 11 mil, pelo Vila Seu Justino.

No documento, o desembargador Carvalho Filho afirma: "Nos delitos contra a liberdade sexual, por frequentemente não deixarem vestígios, a palavra da ofendida tem valor probante diferenciado", ou seja, reconhece que a palavra da mulher que sofreu a violência deve ser levada em conta como qualquer outra prova.

Para Luciana, a reparação não está no valor fixado para a indenização, mas no reconhecimento de que o tempo todo ela estava dizendo a verdade", afirma a Universa Camila Saad, advogada da vítima. "A palavra dela foi levada em conta de uma forma muito contundente e isso ainda é exceção em casos de violência sexual".

O documento reconhece, ainda, o direito da mulher em estar em espaços públicos sem ser assediada ou ter sua liberdade sexual violada: "Como tal, e como qualquer mulher, [Luciana] tinha o direito de ali estar sem ser importunada. Tinha o direito de negar qualquer avanço de qualquer outra pessoa. Tinha o direito de não ter sua intimidade sexual invadida sem o seu consentimento. O réu, por sua vez, tinha o dever de respeitar a individualidade e privacidade da autora. E tinha o dever de aceitar o 'não' civilizadamente."

Estabelecimento falhou ao não acolher e descreditar a vítima

Na decisão, a Justiça reconhece que houve "falha na prestação de serviço" da casa noturna, já que os funcionários não prestaram auxílio adequado a Luciana e que "sequer lhe ofereceram a possibilidade de se dirigir a local mais reservado, para que pudesse conversar sobre o assunto, ou mesmo para que ela pudesse se acalmar e higienizar-se com dignidade" — a agressão ocasionou um sangramento em Luciana, que estava menstruada, e teve que se lavar com água da privada, já que as torneiras do banheiro da Vila Seu Justino ficam em área aberta, sem privacidade.

O bar Vila Seu Justino tem três unidades em São Paulo; a casa onde o crime ocorreu fica no Itaim, zona oeste da cidade - Divulgação - Divulgação
O bar Vila Seu Justino tem três unidades em São Paulo; a casa onde o crime ocorreu fica no Itaim
Imagem: Divulgação

Por fim, o desembargador afirma que houve "banalização e descrédito da reclamação pelos funcionários do estabelecimento" e criticou que a Vila Seu Justino tenha considerado um episódio de violência sexual como "normal" e "desmerecedor de atenção".

"Cabia aos funcionários da casa ao menos perguntar ao agressor sobre a acusação que lhe foi imputada, mas nada foi feito nesse sentido."

"Enxergo essa decisão como um posicionamento positivo do judiciário, que deixou muito bem fundamentado a importância de ouvir a palavra da mulher e de acolher uma vítima de violência sexual. Espero que isso deixe de ser uma raridade no Brasil", diz a advogada.

Ao responsabilizar a casa noturna por um caso de violência sexual que aconteceu dentro do espaço, a Justiça abre precedente para que o mesmo aconteça em outros casos de assédio ou estupro em shows, bares e baladas, afirma Camila Saad.

Decisão encoraja outras mulheres

Quando conversou com Universa pela primeira vez, em 2019, Luciana relatou:

"Na hora em que ele [William] começou a me xingar, pensei que ele fosse me bater. Nem nos meus pensamentos mais criativos poderia imaginar que alguém faria isso num lugar público. Fiquei em choque. Senti sangue escorrendo pelas minhas pernas. Eu estava menstruada naquele dia, mas era um fluxo muito grande, tinha sangue até no chão. Fiquei muito constrangida, corri para o banheiro e me lavei com a água da privada, para não ter de me despir na frente de outras pessoas".

Ela lembra que, logo depois de sofrer a agressão sexual, procurou um brigadista do estabelecimento, que disse que uma "passada de mão" era "normal numa balada".

Outro funcionário a quem Luciana relatou os fatos anotou seu telefone e disse que retornaria, mas a resposta chegou apenas 20 dias depois, pelo Instagram, quando um dos sócios disse que conhecia o caráter de Leone Failla e se referiu à vítima como "louca", "mentirosa" e "feminista de merda", ela conta, agora, ao lembrar o ocorrido.

Na época, Luciana disse que o agressor era sócio informal da casa noturna e amigo dos donos do local, e que, por isso, o estabelecimento estaria ajudando a protegê-lo. Em 2019, quando o caso veio à tona, Universa constatou que Leone Failla se apresentava como sócio da Vila Seu Justino nas redes sociais; mais tarde, a ligação entre ele e o estabelecimento foi reconhecida pela Justiça.

Quando Luciana levou o caso à imprensa, foi divulgado um vídeo em que ela aparece sorrindo para a funcionária do caixa ao pagar a conta, antes de deixar o local. As imagens sugeriam que, por ter sorrido depois de passar pela agressão, ela estaria mentindo — o que aumentou a intensidade dos ataques, segundo ela. "Foi um processo bastante doloroso, principalmente porque encarei muita gente me chamando de mentirosa."

Quando você traz um crime desse à tona, olham para você com uma interrogação, porque o cara é uma 'boa pessoa', um pai de família, o tio de alguém. As pessoas não querem ver um homem próximo como um possível abusador de mulheres, então é mais fácil chamar a vítima de mentirosa."

"A violência sexual não termina quando o ato em si acaba. Eu fui agredida pelo William, quando colocou o dedo dentro da minha saia, mas também sofri violência do brigadista que disse que aquilo era normal, dos funcionários do caixa que não levaram a denúncia adiante, das pessoas que me chamaram de mentirosa depois", afirma. "Mesmo diante de todos esses julgamentos, nunca pensei em desistir."

Luciana comemora a decisão da Justiça e diz que o resultado de sua batalha judicial é lição de coragem para outras vítimas: "Conseguir provar duas vezes, em duas instâncias, que eu estava falando a verdade desde o começo, me deixou muito feliz e mostra que nós mulheres não podemos desistir jamais, não importa o quanto doa".

Outro lado

Os réus ainda podem recorrer e levar o caso ao STJ (Superior Tribunal de Justiça).

Procurados, William Roberto Leone Failla e o bar Vila Seu Justino não se manifestaram até a publicação desta reportagem.