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Prisão no RS recusa doação de obra erótica para detenta não ficar 'agitada'

Mulheres comuns foram retratadas no livro-ensaio de contos eróticos "Ela", de Jader Marques - Divulgação
Mulheres comuns foram retratadas no livro-ensaio de contos eróticos "Ela", de Jader Marques Imagem: Divulgação

Deborah Bresser

Colaboração para Universa, de São Paulo

17/03/2021 04h00

Perto do Natal de 2020, o criminalista gaúcho Jader Marques entrou em contato com a administração do presídio feminino Madre Pelletier, em Porto Alegre (RS), para fazer uma doação. Ele, que também se aventura pela literatura, queria presentear as detentas com o livro de contos eróticos "Ela", de sua autoria.

"Escrevi vários textos, de cunho erótico muito forte, para falar de prazer feminino, libertar as mulheres de certos preconceitos, o foco é o empoderamento", diz o advogado. Os textos são acompanhados de ensaios sensuais feitos por mulheres comuns, que tinham o sonho de fazer fotos. Mas a administração do Madre Pelletier negou a entrada e distribuição para as presas da obra.

Eles disseram que o livro era impróprio para as detentas", diz o autor. "A justificativa que a direção me deu para barrar a entrada é que algumas presas evangélicas, ou de mais idade, se sentiriam ofendidas e outras ficariam muito agitadas, diz o autor.

Para o secretário da Administração Penitenciária do Rio Grande do Sul, Cesar Faccioli, tudo não passou de um mal-entendido. "Por falta de pessoal, a avaliação técnica demorou mais tempo do que de costume e concluiu que, pelo conteúdo, a obra deveria ser usada em dinâmicas com tutoria de psicóloga e assistente social", explica. Fato é que os livros não só não foram distribuídos, como foram devolvidos ao doador.

Fotos de mulheres ilustram o livro de contos eróticos "Ela" - Divulgação - Divulgação
Obras foram devolvidas ao autor três meses após terem sido doadas a presídio
Imagem: Divulgação

"Houve um ruído na comunicação, não é o caso de censura ou vedação. A direção da casa disse que a obra não seria usada de imediato, o que levou o autor a recolher as obras. Eu já liguei para o dr. Jader e me desculpei, não quero alimentar a polêmica", diz Faccioli.

Não foram essas as informações que o autor afirma ter recebido. Marques conta que enviou 400 livros no dia 19 dezembro e que tinha certeza que haviam sido distribuídos. Mas, na semana do Dia da Mulher, foi chamado para buscar os livros. "Me falaram que os livros não seriam distribuídos por causa do conteúdo erótico", conta o criminalista."Estou triste, constrangido e irritado. Se a gente for pensar, é a docilização do corpo, quanto mais amansado, desumanizado, mais dócil."

"Querem restringir acesso da mulher à sua sexualidade"

A advogada criminalista Larissa Palermo Frade afirmar ser um contrassenso não permitir a leitura de contos eróticos pelas detentas, quando elas podem receber visita íntima.

Alegar que as presas podem querer transar mais não é motivo, porque elas podem transar. O argumento de que [esse tipo de leitura] estimularia a prática sexual cai por terra. É curioso que sejam contos eróticos sobre mulheres e para mulheres. Que tabu é esse? Querem restringir acesso da mulher à própria sexualidade, diz.

Foto do livro de contos eróticos Ela, do criminalista gaúcho Jader Marques; obra não foi aceita para distribuição a detentas do presídio feminino Madre Pelletier, em Porto Alegre - Divulgação - Divulgação
Presídio alegou que obra deixaria as detentas 'agitadas'
Imagem: Divulgação

Ela ressalta que a leitura é um direito garantido a todos os presos, de acordo com a Lei de Execução Penal. Há, inclusive, dispositivo legal que garante a remissão da pena por leitura. A cada livro lido em 30 dias o preso pode reduzir quatro dias de sua pena, mas deve apresentar uma resenha da obra lida, que será analisada por comissão formada pelo próprio presídio.

Dados do Departamento Penitenciário Nacional, de dezembro de 2019, mostram que, de 2.079 detentas no Rio Grande do Sul, apenas 25 fizeram opção de remissão de pena por leitura. Em São Paulo, para uma população carcerária de 11.427 mulheres, 178 foram inscritas no programa.

"Risco é a mulher sentir prazer"

"Quem faz essa censura do que entra ou não entra no presídio? Não existe uma regra, porém a Lei de Execução Penal prevê que o preso tenha 'contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes", diz."Esse conceito de moral e bons costumes é um conceito amplo. Quem decide? Vivemos em uma cultura patriarcal, machista, de valores conservadores e ultra tradicional", afirma Larissa.

A psiquiatra Natália Timerman, que trabalhou oito anos no centro hospitalar do sistema penitenciário de São Paulo, diz que a decisão da administração do presídio gaúcho a "constrange, mas não me surpreende".

A ela chama muito a atenção que a leitura tenha sido sugerida como "tutoriável", ou seja com acompanhamento de um psicólogo ou assistente social. "Não faz sentido, que risco um livro pode oferecer? Risco é a mulher que está presa sentir prazer?", questiona. "Não imagino que um livro erótico masculino fosse indicado como uma leitura tutoriada."