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"Vi minha filha sofrer feminicídio e crio meu neto para respeitar mulheres"

Sandra com a filha, Kendra, assassinada em 2019, aos 17 anos - Arquivo pessoal
Sandra com a filha, Kendra, assassinada em 2019, aos 17 anos Imagem: Arquivo pessoal

Sandra M. Salcouski, em depoimento a Mariana Gonzalez

De Universa

05/03/2021 04h00

"A Kendra era minha princesa. Ela era responsável, me ajudava muito em casa, almoçava comigo todo domingo. A gente tinha uma relação muito boa, nunca brigava. Até que o Ronaldo apareceu.

Eles se conheceram quando ela tinha 13 anos. No começo, ele era um bom menino, foi recebido como um filho dentro da minha casa. Mas quando ela foi morar com ele, um ano depois, as coisas ficaram muito difíceis. Ele passou a ser estúpido com ela, agredir, perseguir.

Eles chegaram a terminar e voltar umas dez vezes. Ela voltava para a minha casa chorando, às vezes machucada, organizava as coisas no quarto, e quando eu voltava no final do dia, não tinha mais nada: ela já tinha levado tudo de volta para a casa dele. Era sempre assim.

Eu acho que ele fazia ameaças mas ela não me contava. Não tinha lógica ela continuar voltando com ele depois de apanhar tanto. Ela dizia 'não quero mais, não aguento mais esse homem', mas voltava com ele depois de 15 dias. Quando estavam separados, ele seguia ela na rua, ligava 24 horas por dia. A Kendra chegou a vender o celular pra ele parar de ligar, mas ele continuava ligando para mim, para o meu marido.

Quando eles se separavam e ela ficava sozinha, o Ronaldo não deixava ninguém chegar perto da Kendra. Ele era dono dela. Ele se sentia dono, na verdade, porque dono ele não era.

Minha filha pediu medida protetiva umas três vezes, mas sempre retirava o pedido depois. Ele chegou a ser preso por bater nela.

Em um desses rompimentos, eu sugeri que ela passasse um tempo morando com o pai, em Santa Catarina, para se afastar do Ronaldo. Ela foi, mas chegando lá descobriu que estava grávida. Contou para ele, ele pediu para ela voltar. E ela voltou, direto para a casa dele.

Kendra era a filha mais nova de Sandra; mãe e filha nasceram em Santa Catarina, mas moravam em Mirassol D'Oeste (MT) - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Kendra era a filha mais nova de Sandra; mãe e filha nasceram em Santa Catarina, mas moravam em Mirassol D'Oeste (MT)
Imagem: Arquivo pessoal

Quando ela chegou, eu falei: 'Kendra, por que você foi fazer isso? Vai estragar sua vida tão nova'. E ela disse: 'Mãe, eu quero uma família'. Ela lutava muito por isso. Quando estava com um barrigão enorme, fazia trufa e ia vender na rua, nesse calor daqui de Mirassol [Mirassol D'Oeste, cidade em que Sandra mora, a 200 quilômetros de Cuiabá]. Ela vendia tudo e voltava para casa cheia de sacolas de coisas para o enxoval do neném.

Ela sonhava em trabalhar, voltar a estudar e criar o filho deles. Mas era briga atrás de briga. Foi assim a gestação inteira.

Nos últimos três meses de gravidez, ela veio para casa muito machucada, teve anemia, precisou ir para o hospital, e eu cuidei dela até o meu neto nascer. Quando Bernardo tinha uns dois meses, o Ronaldo veio aqui na porta de casa querendo ver o filho. Ela deixou. Foi só ele entrar para ver o bebê, que eles começaram a conversar e ela voltou com ele de novo.

Uma vez, ela passou a noite inteira na rua com o bebê porque, depois de uma briga, ele não deixava ela entrar em casa. Só soube disso depois. Na hora ela não me contava porque sabia que eu era contra a relação deles.

'Ela me disse: mãe, não quero mais'

Quando ela morreu, tinha se separado dele havia dez dias. Ela tinha apanhado muito, chegou na minha casa muito machucada, carregando o Bernardo, e disse: 'Mãe, não quero mais o Ronaldo, mas não vou mais morar com você, preciso ter meu canto'. Ela estava perto de fazer 18 anos, e decidiu procurar um lugar para morar com o filho, aqui perto de casa.

Eu a estava ajudando a montar o apartamento. Dei um armário novo de presente, e a gente ia comprar uma cama no dia seguinte, mas não deu tempo.

Eu estava trabalhando como segurança em um evento, e uma amiga dela chegou de moto para me avisar que o Ronaldo tinha dado um tiro no amigo que tinha ido levar a Kendra em casa depois de uma festa, mas que ninguém sabia dela. Peguei o carro, fui até o hospital e um outro amigo da Kendra veio correndo e gritando: 'Mãe da Kendra, mãe da Kendra! A Kendra está morta'.

Quando cheguei na frente da casa dela, minha filha estava caída no chão, ainda com o capacete na cabeça. Foram quatro tiros, um deles chegou a cortar o capacete. O lugar já estava isolado, com vários policiais em volta. Ninguém me deixou chegar perto dela. Meu marido foi em casa buscar um lençol, porque eu não queria que vissem ela daquele jeito.

Não consegui entrar para reconhecer o corpo, não tive condições. Velei minha filha por 50 horas — e, depois do enterro, começou minha maior luta: pelo meu neto.

'Depois de matá-la, ele rondava minha casa e mandava recados'

O Ronaldo passou uns dois meses foragido, e ficava rodeando a minha casa, mandando recado pelos comerciantes do bairro. Eu tinha tanto medo que não dormia, passava a noite inteira cuidando do meu neto. Teve um final de semana que passei no rancho de uns amigos e, quando voltei, a casa estava toda revirada. Pedi medida protetiva e pedi ajuda a um amigo da Kendra, que é policial e ficava sempre por perto.

Quando ele se entregou, dois meses depois do crime, teve uma audiência de conciliação para decidir com quem ficaria a guarda do Bernardo: comigo ou com a família paterna.

Foi muito difícil. Passei seis meses afastada do trabalho, vivendo à base de remédios, e tinha que receber as visitas do Conselho Tutelar em casa, às vezes tarde da noite, para ver se ele estava bem alimentado, se a cama dele estava limpinha.

Eu precisava estar forte para cuidar do Bernardo, mas tinha medo de não conseguir. Depois de nove meses, recebi a guarda definitiva. Hoje o Bernardo é tudo para mim. Só não desisti porque sou a única pessoa que ele tem.

Até hoje meu neto vive guardado a sete chaves. Tenho muito medo por ele. Não levo para lugar nenhum, não deixo com ninguém. Antes da pandemia, ele ia para a escolinha, mas só eu e meu marido podíamos buscar. Levei até uma cópia da medida protetiva para anexar à matrícula. Quase não posto foto dele no Facebook. A gente vai no máximo até um parquinho que tem aqui perto, mas ficamos pouco tempo.

'Estou cansada, quero me mudar para SC após o julgamento'

Estou cansada. Agora que eu tenho a guarda e que o crime vai ser julgado, quero voltar para Santa Catarina, para ficar perto dos meus outros filhos e criar o Bernardo longe daqui, com mais liberdade.

Espero que o Ronaldo fique preso por um bom tempo, pelo menos até o Bernardo se tornar adulto. Ele ainda não pergunta da mãe, e eu também falo pouco dela para ele, porque ainda é muito difícil. Quando ele crescer, vai perguntar e eu vou responder numa boa.

Bernardo é uma criança feliz, inteligente, está aprendendo a reconhecer as letras. Não quero fazer ele crescer com ódio da vida, e quero contar também a parte boa da história: como a mãe era trabalhadora, bonita e o amava.

Tem que parar com essa matança de mulher. Tem que parar esses homens que acham que são donos das mulheres, porque não são donos de nada. E é assim que eu vou criar o Bernardo, para ser um homem bom, que respeita as mulheres."

Ronaldo será julgado no próximo dia 25

O assassinato de Kendra Rayane de Carvalho ocorreu em 2019, foi registrado como feminicídio, e será julgado no próximo dia 25.

Procuradas por Universa, as advogadas de defesa, Jacqueline Oliveira Mesquita e Daiane R. Gomes Coelho, disseram que "a verdade virá à tona" e que só se manifestarão no júri.