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Chanel Miller: "Revelar publicamente o estupro é como pular de penhasco"

Chanel Miller, autora de "Eu Tenho Um Nome" - Mariah Tiffany/Divulgação
Chanel Miller, autora de "Eu Tenho Um Nome" Imagem: Mariah Tiffany/Divulgação

Camila Brandalise

De Universa

19/02/2021 04h00

Um ano e meio após ser estuprada atrás de uma lixeira no campus da Universidade de Stanford, na Califórnia, Chanel Miller, 28, leu uma carta na audiência final do julgamento do caso. "Beber não é seu crime. Tirar minha calcinha para inserir seu dedo em meu corpo foi onde você errou. Por que eu ainda estou explicando isso?", disse, entre outros trechos, ao réu, Brock Turner, que se defendeu da acusação dizendo que havia bebido e não percebeu que cometia um crime.

Na sentença, o juiz concordou com o réu e, de uma pena máxima possível de 14 anos, lhe deu seis meses de prisão, afirmando que não seria justo comprometer o futuro do jovem, um nadador promissor. No dia seguinte, a carta de Chanel, que na época mantinha seu anonimato e se apresentava com Emily Doe, foi publicada pelo site Buzzfeed e viralizou. Em quatro dias, tinha 11 milhões de visualizações, foi lida no Congresso americano e fez o juiz ser afastado do cargo.

O crime ocorreu em 2015. Quatro anos mais tarde, ela revelou sua identidade com o lançamento do livro "Eu Tenho Um Nome" nos Estados Unidos. A obra, agora, chega ao Brasil pela editora Intrínseca. Em suas memórias, relata de maneira sincera, detalhada e dolorosa os sentimentos que a tomaram no período que se seguiu ao estupro, do hospital, ao fazer exames para compor a investigação do crime, até o julgamento final.

"É uma marca que permanece para sempre, mas de uma maneira diferente. Levei oito meses para falar sobre o que me aconteceu em voz alta e chorava sempre. Hoje posso falar sobre isso várias vezes ao dia e não vai acabar comigo. Está na minha vida, mas não me governa", diz, em entrevista a Universa.

UNIVERSA - Você conta no livro que quando a promotora do caso pediu para divulgar a carta, você achou que seria publicada no jornal local. Mas a mensagem rodou o mundo. O que isso significou para você?

CHANEL MILLER - Quando a sentença foi anunciada, depois que li minha carta, pensei que falhei. Comecei a me perguntar por que me mostrei tão vulnerável. Parecia uma menina lendo seu diário. Era uma sensação de derrota. No dia seguinte, quando a carta foi postada na internet, vi que tinha um milhão de visualizações. Em quatro dias, eram 11 milhões de pessoas que tinham lido. De repente, comecei a receber muitas cartas de pessoas de todo o mundo me mandando mensagens positivas, dizendo que admiravam minha coragem. Mães me mandavam fotos das filhas dizendo: "Espero que ela seja como você". Essas pessoas me salvaram e me mostraram quem eu era.

Há um movimento global de mulheres falando sobre violência sexual, pedindo punição a agressores, expondo crimes. Deveríamos falar mais sobre o que acontece com as vítimas?

Sim. Uma coisa que percebi é que na mídia, nos filmes, há uma ideia de que a vítima procura vingança. Raramente é isso. Eu não me importo com o cara, eu só queria voltar para a minha vida. Mas precisava assegurar que ele não faria de novo o que fez comigo. Só queria que a história não se repetisse. Falavam: "Ela quer dinheiro". Eu preferiria trabalhar em uma sorveteria para ganhar dinheiro do que passar por tudo que passei.

Qual o impacto que uma mulher causa em outras ao revelar que sofreu abuso?

Revelar um estupro é como pular de um penhasco. Vi isso com as mulheres do movimento Me Too. Elas não sabiam o que tinha lá embaixo, se era seguro, se iriam se machucar. E mostraram que é possível. Eu admiro quem pulou primeiro.

Também acho importante que as sobreviventes de estupro vejam que é possível seguir a vida de várias maneiras, sem que o foco seja o ataque que sofreu. Porque é difícil de acreditar que um dia isso possa acontecer, mas acontece. Fui alimentando cada pequena parte de mim para me manter viva, porque elas estavam morrendo.

No livro, você fala sobre sentir sua personalidade ser apagada. Por que a violência sexual causa isso?

Porque sofrer um estupro, e essa é a parte mais triste, significa que sua história foi escrita por alguém que não é você. Temos que recuperar a narrativa, ser dona da própria vida outra vez. E às vezes a sensação é de que não conseguiremos. Há a agressão física, mas também uma sensação igualmente prejudicial. Eu me sentia desorientada, não conseguia lembrar do que gostava, não achava que merecia ser cuidada. Estava em um estado muito vulnerável.

Tem algo sobre a vida de uma vítima que as pessoas deveriam conhecer?

Que é uma marca que permanece para sempre, mas de uma maneira diferente. Eu levei oito meses para falar sobre o que me aconteceu em voz alta e chorava sempre. Hoje posso falar sobre isso várias vezes ao dia e não vai acabar comigo. É uma história que está na minha vida, mas não me governa. É quase um superpoder conseguir falar sobre isso assim.

O juiz do seu caso fez comentários na sentença que protegiam o agressor, colocando a culpa na bebida, dizendo que ele era um atleta promissor. Esse tipo de comportamento do judiciário ainda é comum após a repercussão do seu caso?

livro eu tenho um nome - Divulgação - Divulgação
Capa do livro "Eu Tenho Um Nome", recém-lançado no Brasil
Imagem: Divulgação

O juiz foi afastado. Mas eu acho que o sistema judiciário ainda está desatualizado. O conhecimento sobre seu funcionamento é que avançou. Podemos nos treinar para olhar quem fala, quem está sendo humanizado, quem não está, quem parece descartável. Tenho esperança de que estamos indo na direção certa, não é mais uma sobrevivente gritando sozinha, achando que está louca. Com todos vendo o que está acontecendo, essa mulher não vai se sentir só.

Você faz críticas à cobertura da imprensa. O que jornalistas podem fazer para ajudar as mulheres?

Acho importante sempre apresentar um contexto geral, falar do que está acontecendo no mundo em relação à violência sexual, para mostrar que não tem a ver com a roupa ou com o que ela bebeu na noite. Também acredito ser preciso informar sobre o processo do trauma. Se uma sobrevivente não chora ao falar sobre o caso, não quer dizer que ela não foi afetada. As pessoas reagem de maneiras diferentes.

Deve haver um cuidado com a intimidade da mulher. Eram publicados detalhes sobre o estupro que eu nem sabia, fui jogada aos holofotes e me sentia observada como um gorila.

Vítimas de crimes sexuais ainda ouvem frases como "por que não reagiu?" ou "está denunciando para conseguir dinheiro". Por que mulheres que foram estupradas são tratadas dessa forma?

O estupro é visto como um fracasso pessoal. Dizem: "Ela devia ter sido mais esperta". Mas é porque querem acreditar que depende da mulher sofrer ou não um estupro. Esse pensamento faz as pessoas se sentirem seguras. Pensam: "Não vou ser burra como ela, então estou protegida". Mas a realidade é que qualquer uma de nós pode ser abusada a qualquer momento.

Ficou com medo de sofrer ataques com a publicação do livro?

Muito. Quando comecei, toda frase que escrevia pensava: "Vou ser processada". Minha editora um dia me disse que era para eu escrever como se estivesse contando a história para ela, ou para alguém íntimo. E quanto mais eu escrevia, fui aprendendo a me perdoar mais, fui entendendo que por mais que tenha cometido erros, nada justificava eu ter sido estuprada. Em certo momento eu comecei a acreditar que era minha culpa, me ensinaram a sentir vergonha pelos comentários que faziam sobre meu caso. Foi um ano e meio de pensamentos negativos sobre mim.

O que diria para uma vítima de estupro que pode estar lendo esta entrevista?

Eu diria para nunca desistir de você e ouvir sua intuição. Durante o processo de investigação e julgamento do meu caso, o que eu lia e ouvia é que tive um apagão na memória, que esqueci tudo, que não tinha nada para oferecer. Mas eu tinha. Mesmo que não me lembrasse da noite em si, eu sabia o que estava sentindo. Muita gente tentará te convencer de que seu sentimento não é válido, não deixe que isso seja tirado de você. E dê crédito a você mesma só por ter sobrevivido a um dia. Aquele dia que tudo dá errado. Teve vezes em que eu acordava chorando, desempregada, mas continuava firme, seguindo.