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"Minha vida mudou quando minha filha perguntou: 'Eu sou um menino?'"

Paula com o filho, Miguel - Arquivo pessoal
Paula com o filho, Miguel Imagem: Arquivo pessoal

Paula B. em depoimento a Fabiana Batista

Colaboração para Universa

11/02/2021 04h00Atualizada em 17/02/2021 10h23

"'Também quero'. Essa foi a reação da minha filha de 7 anos, quando, após contestações e dúvidas quanto à sua própria identidade, contei sobre a existência de pessoas trans. Apesar do incômodo - e de ainda não entender que aquele que sempre chamei de filha, na verdade, se entendia como Miguel - a criança não sabia que existiam pessoas trans, e, quando descobriu, o brilho nos olhos foi espontâneo.

Naquela época, eu ainda tentava postergar a conversa e respondia: 'Quando você crescer, poderá ser o que quiser'. O que eu não sabia, ou ignorava, é que a construção de identidade acontece ainda na primeira fase da infância. No caso do Miguel, os sinais de inadequação de gênero apareceram aos 3. Eu ouvia questionamentos sobre o que era ser menina e menino, e o eterno desejo de ter nascido menino.

Inicialmente, por acreditar que esse desejo tinha fundamento nos privilégios que percebia nos amigos, sempre deixei claro que não tinha limitações por conta de seu gênero.

Comprei os livros 'Mulheres Incríveis' e 'Histórias de ninar para garotas rebeldes', e líamos juntos antes de dormir. Meu objetivo era apresentar novas referências femininas na sociedade para a criança e e isso o faz admirar e exaltar a presença das mulheres e contestar a ausência delas.

Mesmo com esses artifícios, algo continuou incomodado. Eu, em conversas, repetia: 'Quando você crescer, poderá ser o que quiser'. Eu não sabia o que fazer, e postergar para o futuro era a forma que encontrei para lidar com essa situação.

Até que um dia, deitados na cama antes de dormir, me perguntou: 'Mamãe, eu sou um menino?'. Com aquela pergunta, me pedia que encarasse com seriedade aquelas questões que floresciam dentro dele.

'Será que nós temos um filho trans?, nos perguntamos'

Episódios como esse passaram a ficar mais frequentes. Me lembro, num deles, de estar com seu pai, e nos questionarmos: 'Será que temos um filho trans?'. O que nos assustava não era a possibilidade de ele ser trans, mas de ser uma criança de quatro anos. Ao longo do tempo, passou a insistir para cortar o cabelo, e vestido já não usava desde os 4 anos, assim como sua preferência por shorts e bermudas e incomodo com saias.

Aos seis, começou a ficar cada vez mais triste. Uma vez, ao ganhar de presente uma roupa feminina, se perguntou: 'Por que eu só ganho roupas assim? Eu quero me vestir com roupas radicais'. Diante disso, decidimos comprar roupas com aspectos que ele chamava de 'radical', ou seja, mais masculinos. Foi sua felicidade.

As novas roupas, corte de cabelo chanel, desenho animado e brinquedos, foram, talvez, a forma mais fácil de chegar perto do desejo de ser um menino naquela época.

Já no início do ano passado, com o corte de cabelo e a roupa mais masculinos, as pessoas passaram a confundi-lo. Quando eu corrigia, ele me olhava bravo: 'Mãe, não corrige'. Percebi que esse reconhecimento era exatamente o que o Miguel queria. Cenas como essas fizeram subir minha bandeira de alerta. Dali, percebi que o trem da vida passava, e caso eu não quisesse que o Miguel atravessasse o trilho sozinho, precisava embarcar logo.

'Me chamem de Miguel, ele disse a todos'

A situação ficou mais evidente em uma segunda-feira, um mês depois de começarem as aulas de 2020. Após chegar em casa da aula, meu filho simplesmente, na maior naturalidade e animação, falou: 'Mãe, meus amigos já me chamam de Miguel na escola. Eu também pedi para a professora, mas ela disse que só pode depois que você escrever um bilhete na agenda. Você pode fazer isso para mim?'

Eu fiquei completamente sem chão, pois não esperava que a situação se desenrolasse desse jeito. E escrever naquela agenda seria finalmente desbravar novos mares e me posicionar oficialmente.

Foi uma semana intensa. Inicialmente me senti sozinha, mas determinada a buscar ajuda. Entrei em contato com um rapaz trans que conhecia e ele me acolheu. Depois de longas conversas, me recomendou uma psicóloga especialista em gênero e sexualidade. E fui mais uma vez acolhida. Durante nossa conversa, ela me tranquilizou, e disse que, antes de qualquer coisa, eu precisava acolhê-lo. Ela também me colocou em contato com o coletivo maravilhoso "Mães pela Diversidade", que foi e tem sido meu farol nessa jornada.

Eu, como bióloga, também pesquisei e li artigos científicos. Um dos aprendizados, em tantas leituras, foi aprender que abraçar meu filho traria mais benefícios para todos nós. Porque oprimi-lo em um padrão de cisnormatividade, como furar a orelha ou vesti-lo com uma determinada roupa, é ainda mais violento.

Aos poucos, durante as brincadeiras na rua, em casa ou na escola, passou a pedir para ser chamado de Miguel. Além disso, diferentemente dos adultos, seus amiguinhos se adaptaram rapidamente. Uma vez, a vizinha contou que ao chegar em casa, sua filha apresentou o meu filho a todos, e chamou a atenção para que todos o chamassem não mais pelo nome feminino, mas de Miguel. E pronto.

'Na escola, não me senti acolhida'

Essa transição consciente começou bem no início da pandemia, algumas situações foram interrompidas, e outras intensificadas. Contei para algumas pessoas, e deixei que outras soubessem sozinhas pelas redes sociais.

Nas escolas foram diferentes reações, enquanto a creche procurou nos acolher, a escola dificultou o convívio. Fiz uma reunião com a coordenação e me senti pressionada. A diretora, ao tratar do assunto, foi desrespeitosa. Ao contrário do relatado por outras mães de crianças trans, explicou que foi instruída a não usar o nome social do meu filho, e sim aquele que estava na chamada.

[Em 2018, o MEC autorizou, em deliberação do Conselho Estadual de Educação, "a possibilidade de uso do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares das instituições de educação básica e superior que integram o Sistema de Ensino do Estado do Rio de Janeiro"]

Ao longo desses meses, durante a pandemia, eu continuei em diálogo com algumas profissionais que estavam abertas à questão. Enviei texto e lives. E, atualmente, a professora respeita o nome social do Miguel, processo importante para ele, que já percebeu que apesar de seus amigos o chamarem pelo nome, há colegas que só o farão legitimados pela professora."